Palavras a respeito da arte e dos artistas em Coimbra

 

 

Entrevista publicada no Diário de Coimbra em 31 de Outubro de 1993

Na Casa-Museu da Fundação Bissaya Barreto decorre uma exposição de pintura e desenhos da autoria de Costa Brites. Dadas as apetências artís­ticas e o saber deste artista procurámos recolher da sua pessoa uma entrevista que elucidasse os leitores do que representa para si a arte, do panorama artístico em Coimbra e de outros aspectos relacionados com o seu mundo de linguagem e comuni­cação. Costa Brites, que oferece uma pin­tura que exige uma pausa reflexiva, deu-nos um texto que requer, realmente, uma leitura reflexiva para o futuro da cultura, das artes plásticas, dos artistas, na cidade do Mondego.

Diário de Coimbra – O que é a arte para o Costa Brites?

A Arte para mim tem sido a maneira de fazer o cruzamento de alguma vocação para descobrir valores do conteúdo estéti­co, com a necessidade de comunicar com as pessoas.

No plano individual representa um pro­cesso de descoberta e reconhecimento dos horizontes que me são interiores, ou seja, uma espécie de viagem aos limites da mi­nha personalidade. O processo, no seu conjunto, envolve uma imensidade de ati­tudes e riscos apaixonantes, reflexo natu­ral da complexa intercomunicação entre os seres racionais vivos.

O que me estimula infinitamente a con­tinuar, como deve calcular.

D.C. – Como vê o panorama artístico em Coimbra?

Com os antecedentes históricos e todo o conteúdo sócio-cultural que a cidade pos­sui, seria de esperar de Coimbra um pouco mais do que realmente existe. Consideran­do apenas o todo nacional (para não estar a compará-la com outras cidades euro­peias de passado histórico e peso demográfico semelhantes) é evidente que Coimbra não deveria estar tão longe como está, da­quilo que se passa em Lisboa e no Porto, por exemplo. Atendendo às aflorações de inte­resse artístico organizado que vão surgindo no país, aqui e ali, ainda mais se sentem algumas das carências que a generalidade das pessoas observa. Vivo aqui apenas há 22 anos (para a cidade é pouco, para mim é muito…) e sempre me recordo de inflamados debates em tomo desta questão, com queixas e recriminações, as mais diversas. Espero que os próximos 22 anos tragam mais mudanças qualitativas que as que observei até aqui, para benefício geral do panorama que refere.

Para já, seria de desejar, por exemplo, que a cidade pudesse articular-se melhor com as suas iniciativas e os seus espaços culturais. Há muitas iniciativas culturais e imensas pessoas interessadas em acontecimentos ar­tísticos. Mas continua a perder-se muito des­ses acontecimentos e de todo o esforço de produção neles empregue, simplesmente porque não há conhecimento da sua ocorrên­cia, atempadamente. As iniciativas repou­sam muitas vezes no esforço de indivíduo isolados e faltam à cidade instrumentos de intercomunicação eficazes.

O que é dramático é que estas questões nem são as que me parecem mais difíceis ou mais profundas para resolver a questão de evolução artístico-cultural do meio. Dependem, é certo, de alguns meios mate­riais e de organização. O principal, contu­do situa-se no aspecto humano. E a esse propósito julgo que há valores nesta cida­de que nunca foram devidamente aproveitados, que permanecem desconhecidos e que nunca virão a dar o seu apetecido contributo a este aspecto das nossas vivên­cias. Penso que devieram surgir novos conceitos de gestão cultural nas diversas instituições que têm algum poder e desejo de intervir neste panorama; que deveria dedicar-se o tempo e os meios necessários ao estudo real do problema, avaliando experiências e soluções levadas a cabo noutros locais. Penso, em suma, que tam­bém nesta área deveria existir um espírito empreendedor, uma capacidade de projec­tar e idealizar o futuro, transformando o presente, com o qual ninguém se declara satisfeito, ao que parece.

D.C. – Esteve na Alemanha com uma bolsa do Goethe-Institut. Que frutos co­lheu para a sua vida artística?

Colhi um estímulo inegavelmente im­portante, como são todos aqueles que nos põem em contacto com realidades fecun­das e profundamente diferentes. Sendo um artista aparentemente muito conotado com a cidade de Coimbra repare que não senti necessidade, nem antes, nem duran­te, nem depois dessa experiência de alte­rar, no imediato, o teor e o espírito das minhas propostas, que cheguei a expor na própria Alemanha. Quanto aos mecanis­mos de intercomunicação que abordo na resposta anterior, posso referir que tive um qualificado comentário crítico da minha exposição, com foto, publicado num pres­tigiado jornal de Baden-Wurtemberg, que tem projecção nacional (o «Badische Zeitung»). Coisa que nosso país, nem é bom pensar numa primeira realização.

D.C. – Pode viver-se da pintura, em Por­tugal? O Costa Brites vive da sua arte?

A questão do desafogo material das pes­soas que se dedicam à cultura em geral, e à arte em particular, é reconhecidamente difícil. Exceptuando uma reduzida porção de casos é notória a dificuldade de sobrevi­vência confortável dum artista, com base única nos seus ganhos. Existe uma espécie de compromisso de eficácia entre os artistas e o meio que causa distorções muito injustas e cruéis. «Se vales muito, vales cada vez mais, se vales pouco, não vales nada»! Esta bitola é terrível, e tem derrubado muitas obras artísticas, à nascença! Não vale a pena inserir neste ponto os considerandos nor­mais quanto ao «real valor» deste ou daque­le artista, por ser um facto que não altera muito, infelizmen­te, a questão deste modo resumidamente abordada.

Como refugio e defesa perante es­tes factos, alguns artistas especiali­zaram-se num es­forço de aparên­cias, fabricação de curriculum, ima­gens de marca, processos de insi­nuação perante agentes criadores de imagem, etc.. O todo destas cir­cunstâncias invoca o drama do palha­ço que chora, e é um sintoma da fra­queza cultural do meio!…

Quem ganha di­nheiro com a pintu­ra não são geral­mente os artistas. É como a batata de Montalegre, que dá dinheiro a ganhar a muita gente, menos aos camponeses de lá, percebe?

Isto para não falar naquela situação conhecida que é a do artista valer mais morto que vivo. Se a sua obra tiver sido açambarcada atempadamente por um banqueiro, então, os preços sobem às nuvens!…

No que diz respeito, continuo a dizer, se me perguntam o que faço, que sou empre­gado bancário. Este sistema é apenas uma peça da estratégia de independência que continuo a defender, como método de tra­balho. Outras peças derivam da forma de convivência cultural que tenho consegui­do pôr em prática com as pessoas que se têm interessado pelo meu trabalho; ou são, ou fazem-se todos meus amigos. O ovo de Colombo, como vê!

Isto sem contar com pequenos detalhes como sejam: um trabalho imenso cheio de dedicação, interesse, clareza de processos e alguns outros condimentos que não por­menorizo para não aumentar o clamor dos que me vão criticar por afirmar estas coi­sas.

D.C. – Já agora que põe essa questão, sempre gostaria de lhe perguntar: que me diz do facto conhecido de existirem alguns acérrimos críticos do seu trabalho?

Tenho sabido, por amigos, que assim é. Julgo aliás que a posição de independência a que atrás aludo tem muito a ver com esse facto. Bem vê; eu não estudei em acade­mia nenhuma, não frequentei o atelier de nenhum notável, não pertenço a nenhum grupo organizado e tenho assumido as mi­nhas próprias ideias, independentemente «daquilo que se faz lá fora». Insisto em reflectir de modo autónomo aquilo que eu penso serem os valores da minha geração sócio-cultural, ou seja, não me preocupo em fazer a «pintura do futuro». Se existe futuro, e eu penso que sim, julgo que vão existir pessoas que desejem saber aquilo que eu penso agora. Aquilo que eu sinto e aquilo que me preocupa agora, da mesma forma que não prescindo de mostrar às pessoas de hoje as minhas visões íntimas, numa projecção do que já foi chamado «uma poética do espaço». Trabalho inscri­to num contexto de realidades adversas, num quotidiano que me hostiliza pelo mau gosto, pela falta de sensibilidade, pela falta de inteligência, pela sacralização da futili­dade e pela vulgariza­ção da violência.

A esse propósito eu gostaria de referir que acho de má política e de péssimos resulta­dos a atitude, que pa­rece tradicional entre os artistas de Coim­bra, de se hostilizarem surdamente, num isolamento de opinião que é confrangedor e apenas deriva duma certa miséria do meio. Esta ideia de cons­tituir «o outro» como concorrente a depre­ciar, sem se chegar a conhecer capazmente qual a sua mensagem, e sem participar da sua riqueza interior, tem originado um cli­ma deprimente e estéril em todos os senti­dos. Por isso têm permanecido num apagamento sustentado a existência de orga­nismos de entre-ajuda artística (mitigada apenas por boas vontades de circunstân­cia), e empobrecida a convivência pessoal entre congéneres.

Para concluir, apenas lhe digo, que, não me considerando um grande artista, não me acho merecedor de grandes detracções que, de resto, foi algo que sempre acompanhou muitos dos pintores que fizeram histórica.

D.C. – Normalmente os seus quadros apresentam-se vazios de figuras humanas. Porquê?

Essa pergunta tem-se sido feita tanta vez, que inclui no meu livro «Visualida­des» um texto em que tento esclarecer o meu ponto de vista a esse respeito. Aliás, também o excelente prefácio do meu ami­go António Pedro Pita ao assunto se refere como toda a clareza. Como não consigo neste espaço concentrar de forma mais apropriada aquilo que lá se encontra dita, faço o pequeno desafio aos leitores de procurarem o livro o esclarecimento dese­jado. Penso que vale a pena. Para os inte­ressados que não encontrem o livro à ven­da, terei muito gosto em oferecê-lo.

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