Multiplicação das galerias em Coimbra, que evolução?

Publicado no Diário de Coimbra a 18 de Junho de 1994

(algumas emissões e cortes de somenos são de minha autoria, “et pour cause…”)

Publicou recentemente o Diário de Coimbra um artigo em que é feita uma resenha do passado e do presente das galerias acti­vas na cidade.

Con­fesso-me motivado a vir dizer também algo sobre o assunto, limitando-me a pôr algumas perguntas a mim próprio (e ao leitor…) e a aflorar alguns temas que valeria a pena deba­ter num âmbito mais vasto.

Talvez seja “excesso de zelo” afirmar que a prolifera­ção de galerias não corres­ponde necessariamente a uma evolução. Se antes não exis­tiam galerias e agora existem, forçoso é concluir que houve realmente uma evolução.

Tanto mais que uma galeria de arte não é (não deveria ser…) um estabelecimento qualquer. Uma galeria de Arte é uma instituição cultural que promove o encontro, de forma adequada, entre produtores e consumidores de objectos de arte, dois pólos extremos dessa teia complicada e fasci­nante a que podemos chamar “o meio artístico”. Meio que não se esgota no âmbito da comercialização das obras de arte, antes se projecta num sem número de organismos e situações culturais que permeabilizam (deviam permeabilizar!…) todo o tecido social.

Por seu turno o “consumidor coleccionador” (essa espé­cie tão nobre e rara que marca presença ao longo de toda a história da arte) deve saber exactamente o chão que pisa, ser culturalmente auto suficiente e, nos casos em que não disponha de especialização, deve estabelecer um contacto sensibilizada e enriquecido com o “galerista dinamizador cultural” – por um lado – e com o “artista produtor” – por outro.

Uma auto-descoberta

A aquisição de uma obra de arte não deve ser uma atitude vulgar, corriqueira ou compa­rável à compra doutro qual­quer objecto de utilização prá­tica.

Adquirir uma obra de arte é uma atitude de auto-descober­ta, mediante a qual não esta­mos a fazer um simples inves­timento. Estamos a estabelecer com a vida um relacionamento eminentemente qualificado, procurando descobrir no espí­rito do artista as verdadeiras ressonâncias da nossa própria sensibilidade.

Comprar um terno de “maples” é importante. Tem a ver com o nosso gosto, e com a forma sensibilizada como recebemos os nossos amigos. Contudo, e deixando de lado a questão das disponibilidades de cada um, com a obra de arte que penduramos por cima do terno de “maples” nós esta­mos a mobilar o interior da nossa alma. Estamos a colocar as vivências do nosso quoti­diano ao nível que merecemos e desejamos: o mais inspirador e estimulante possível.

Essa atitude pode marcar todas as nossas perspectivas de vida, influenciar o compor­tamento dos nossos filhos, demarcar o território de quali­dade e elevação que pretende­mos imprimir às nossas vivên­cias. Dar às pessoas que convivem connosco o melhor da nossa iniciativa espiritual, como oferecer um bom vinho que abra o sorriso, ou fazer ouvir uma bela peça de músi­ca, que abra as portas da sensi­bilidade.

Nesta ordem de ideias, parece-me difícil situar a com­pra e venda de obras de arte no espaço restrito do investi­mento, numa atitude um tanto vulgarizada (e vulgarizante…) daqueles que compram qua­dros como quem compra acções da bolsa…. Espaço propício, aliás, para que o artista perca o contacto com o seu público, para que o públi­co perca de vista o artista, e para que – na área intermédia – se instale uma poderosa rede de falsos mediadores, isto é: especuladores.

A palavra arrepia, mas apli­ca-se.

O apoio e a percentagem

O comerciante que tem o gosto de trabalhar com objec­tos de arte pode e deve ter o seu lucro. Mas só alcançará marca de qualidade e prestígio se conhecer bem o terreno onde se move, se possuir estratégias adequadas para o estimular, informando e enri­quecendo a opinião das pes­soas com quem trata.

Não esquecendo o apoio que muitos galeristas têm for­necido aos artistas ao longo dos tempos (facto que fez his­tória nos casos exemplares), e esquecendo um pouco a ques­tão polémica do nível das per­centagens que lhes cobram, ocorre então perguntar:

Será que todos estes pressu­postos pertencem ao universo (já numeroso…) dos estabele­cimentos que comercializam arte em Coimbra? Ou será que nos encontramos ainda a navegar no voluntarismo improvisado, no “atirar o barro à parede” e no “vamos lá ver o que isto dá”?

Responder a estas questões de modo simplista não tem qualquer interesse, do mesmo modo que julgo supérfluo fazer aqui uma (mais uma…) ordenação polémica de valores relativos, dizendo quais são as boas galerias e quais são as más.

Importante será que cada galeria (dentro do espaço de opções que lhe é próprio) seja 100% eficiente, cumprindo com regularidade e profissio­nalismo o projecto que deve ter bastante claro diante de si.

Importante seria discutir e aperfeiçoar a ideia que preside à transacção, divulgação e dig­nificação da obra de arte, no contexto do maior escrúpulo estético possível.

Importante seria articular as galerias, de forma que actuas­sem com alguma dinâmica conjunta, associando-se no possível e no desejável. Uma conquista dessa natureza per­mitiria, por exemplo, uma melhor divulgação de todas as suas iniciativas através dum folheto adequado que – junta­mente com uma planta esque­mática da cidade onde apare­cesse a localização das gale­rias – estas pudessem dar conta do seu programa de exposições, horários de visita e outros dados de interesse.

A iniciativa constituiria um exercício de coordenação muito positivo para todos os interessados, ganhando o sec­tor um mínimo de representatividade e mais espaço na atenção pública. Fácil seria acrescentar algumas suges­tões a esta, tão elementar. O bom senso das realidades recomenda, naturalmente, alguma moderação…

A dimensão de Coimbra já exige o aparecimento de ini­ciativas deste género, e a utili­dade das mesmas está compro­vada em meios mais desenvol­vidos.

Se um ou outro dos interlo­cutores do processo sorrir perante a ingenuidade da

sugestão apresentada, conven­cido pela pujança do seu pró­prio projecto, eu gostaria de recordar – em reforço do que acima se diz – que também a própria concorrência assume, no contexto do comércio de objectos de arte, um carácter muito diferente daquele que toma noutras áreas de comér­cio.

Se os vendedores de objec­tos de primeira necessidade disputam acesamente clientes que existem, o problema dos actuais galeristas será o de tentar formar uma ampla camada de visitantes interes­sados ( clientes que não exis­tem…) que façam sistematica­mente “a volta das galerias” e cujo gosto evolua o suficiente para que, numa fase seguinte, se dê o momento mágico da adesão e da participação..

Conquistar os hesitantes…

Avançando um pouco (e salientando a minha total inde­pendência em relação à activi­dade do sector), louvarei todo o labor de divulgação e estí­mulo que as galerias possam trazer ao meio artístico, fazen­do com que se alargue o número daqueles que – há longo tempo hesitantes – comecem finalmente a adqui­rir e participar no enriqueci­mento inequívoco que a frui­ção de obras de arte propor­ciona.

De igual modo, para que não continue a haver todo um alheamento e ignorância bas­tante generalizados a respeito de conhecimentos artísticos básicos, até do ponto de vista técnico.

Para que não continuem a ser possíveis parangonas enor­mes a respeito de “telas” numa exposição onde só apareceram gravuras; para que não se chame gravura a uma serigra-fia ou a uma simples estampa; para que não se venda uma modesta estampa litográfica

com a exótica (e falsa…) designação de “prova de artis­ta”; para que não se subalter­nize um lápis por ser um lápis, uma aguarela por ser uma aguarela, reverenciando logo de imediato um óleo sobre tela, mesmo que fartamente medíocre, e se embandeire em arco perante um subproduto dum nome promovido, deixan­do de lado uma bela obra dum desconhecido…

São indicadores duma acção positiva da presença de espa­ços de arte em Coimbra: a divulgação dum crescente número de artistas e tendên­cias estéticas; a edição mais regular de folhetos/catálogos a respeito dos artistas que expõem; a utilização de fichei­ros de convidados mais cuida­dosamente elaborados; o aces­so que alguns espaços têm dado a nomes entretanto saí­dos das escolas de arte já pre­sentes na cidade e, “last but not the least”, o comércio e mostras cada vez mais notá­veis de “múltiplos”.

Um facto, só aparentemente menor, neste estado de coisas, é a evolução do interesse pela arte do encaixilhamento, agora melhor representado na cidade, não sendo tão necessá­rio como há anos ir ao Porto ou algures, para fazer acondi­cionar devidamente um óleo, uma gravura ou uma estampa.

Em ocasião próxima abor­daremos a questão seguinte:

Multiplicação de objectos à venda: oferta condigna?

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