Publicado no Diário de Coimbra de 25 de Junho de 1994
No primeiro escrito que publiquei sob este título, confiei aos leitores algumas interrogações a respeito da proliferação de espaços de comercialização de objectos de arte nesta cidade.
Venho colocar desta vez uma questão semelhante, e complementar:
As vitrinas cheias e os escaparates repletos não são garantia de qualidade. Também as paredes recobertas de telas não são garantia de bom gosto.
Desse mal se queixam muitos daqueles que continuam a afirmar que o meio artístico Conimbricense é sub-desenvolvido e provinciano, pelo que é fora que têm de ir comprar aquilo que desejam e de que necessitam.
Tal altitude, a generalizar-se, vai dar origem a uma mão cheia de boas colecções mais ou menos confidenciais, mas nada contribuirá para romper um círculo mais ou menos vicioso: Não há oferta, porque não há procura, e vice-versa.
Por isso, pergunto:
Valerá a pena afirmar a independência e a autonomia artística das cidades não capitais onde não chovem milhões ? Valerá a pena existir em Coimbra uma comunidade artística activa e valorizada? Valerá a pena tentar subsistir à custa das sensações fortes da viagem ao estrangeiro, da importação de peças raras e da pequena especulação em circuitos fechados?
Coleccionar ou especular ?
Não tem qualquer significado duradouro para o nosso futuro cultural colectivo, existir um certo número de pessoas que ilustram a sua intimidade com a aquisição de peças importadas dos leilões lisboetas ou outros, por muito legítima e gratificante que seja essa atitude no plano individual. O futuro se encarregará de espalhar ao vento os objectos assim amorosamente coleccionados, nada restando senão a componente “investimento”, e mesmo assim… depende dos netos!
Não tem igualmente qualquer significado para o meio artístico e cultural, que algumas pessoas procedam ao investimento e negociação de peças de arte, sem que isso obedeça a um projecto clarividente, complementado com encomendas regulares e prospectivas, abertas para o nosso próprio meio e seus intervenientes.
Repito a questão: como é que vão subsistir (ou aparecer…) os valores de autonomia artística sem encomenda sustentada ou apoios institucionais, nem públicos nem particulares? Como é que vão fazer os novos (e velhos…) artistas, por vezes bastante isolados perante um meio que os olha de soslaio, lhes regateia a atenção e lhes inveja os ganhos (quais ganhos?…).
O que digo em relação às artes visuais aplica-se como é evidente a todas as áreas e disciplinas da expressão artística, para não falar noutras áreas da actividade intelectual, onde parece mais assente o interesse numa afirmação de valores próprios.
Tais valores e tal autonomia são os únicos garantes da afirmação genuína de uma independência e originalidade culturais que, para serem válidos, devem ser (também) produzidos, sonhados, discutidos e entendidos aqui, como testemunhos universalizáveis da nossa forma de estar no mundo e da nossa capacidade de o enriquecermos por nós mesmos.
A completar esta série de perguntas, uma atrevida reflexão: o leitor já reparou que Coimbra, em séculos passados, sustentou uma comunidade activa de artistas de grande qualidade e que, hoje em dia, a “encomenda” artística está reduzida a um mínimo tão mínimo que nos arriscamos a não deixar nada de vivo atrás de nós, de nossa própria autoria?
A pergunta feita assim é tão legítima como as que costumam colocar-se em relação à defesa do património. Ou se defende o património, ou não. Ou se aumenta e enriquece o espólio artístico da sociedade, ou não. Ou se exercita a independência cultural ou nos escondemos de vez atrás do televisor.
Essas questões têm a ver com a produção, a apreciação, a posse e o respeito pela obra artística original. Sem artistas capazes e activos, tudo isso (e o património…) não passa duma ficção, apetece dizer, hipocritamente traída.
O medo e o pragmatismo
São as situações de menoridade e dependência cultural e artística que acarretam um falso mercado de objectos artísticos, abundantemente espalhados por expositores, paredes de galerias e outros locais mais ou menos vocacionados, conforme questão colocada no início desta nossa conversa.
E, se foram bem compreendidas as palavras que inseri no primeiro desta série de artigos, volto a referir a inutilidade ridícula da concorrência não dialogante, numa actividade onde deveria imperar o sentido da participação, e tão dependente do que possa ter de qualitativo e convivência!.
O negócio de objectos de arte, para alcançar verdadeira respeitabilidade, criar novos interessados e conquistar o clima próprio duma actividade enriquecida, tem de ser feito com cultura e sensibilidade, não esquecendo as componentes humanas, seu principal suporte.
Caberia neste ponto dar uma palavrinha ao número significativo de cidadãos interessados, que passa toda a sua vida a adiar “a tal compra” duma peça de arte lá para casa.
Dada a distância a que se encontra o nosso meio das fontes de apoio real da actividade artística, penso que o aparecimento de novas camadas de interessados activos poderia constituir uma novidade importante. A única que me é possível destrinçar, dado o estado das coisas no interior da nossa sociedade, frequentemente associável a cenários de “crise”, “recessão”, “vacas magras”, etc.
Menos que a recessão ou outra causa de raiz estritamente económica, penso ver em tudo isto a manifestação duma certa tristeza, dum certo cepticismo, dum abandono da vitalidade em favor do medo, da indiferença e do avaro pragmatismo.
Comprar obras de arte tem a ver com a sensibilidade, com a educação, com o espírito de convivência (valores como se sabe um pouco abatidos em presença de outros, de efeito mais musculado e prático…). Mas também tem a ver com o tipo de opções que as pessoas fazem no seu dia a dia e na qualidade do amor que sustemos por nós mesmos, e pela vida.
1000 cm 3: um quadro!…
Eu já não queria publicar uma lei que obrigasse todas as pessoas que compram carros de grande cilindrada a ter em casa pelo menos um quadro por cada mil centímetros cúbicos (a lei seria aprovada por unanimidade, com carácter de medida ecológica, mas não seria aplicável na prática, como tantas outras…).
A aquisição dum objecto de arte tem a seu favor a superioridade moral de ser uma compra distintamente supérflua, pressupondo uma atitude esclarecida de prazer e de realização pessoal.
As obras de arte não são o que se chama “um artigo de primeira necessidade”, atingindo por isso uma nobreza rara que vem depois de tudo o que é essencial, conferindo à totalidade uma harmonia profunda e “indispensável”.
A arte é pois tudo o que não é “necessário”, sendo não obstante “indispensável”.
No próximo episódio destas trocas de impressões não falarei para os coleccionadores encartados (que os há na nossa terra) e que sabem muitíssimo do assunto, mas sim para aquelas pessoas que não sabem “por onde começar”.
O próximo tema a abordar é o seguinte:
Começar a comprar: o quê, quando e como?