Visita ao Atelier de Mário Silva

 

Publicado no Diário de Coimbra de 18 de Julho de 1997

Um dos amigos que sempre me tem convidado para que o visite é o pin­tor Mário Silva. E não me ficava bem – tendo recomendado já aos meus lei­tores, como prática artisticamente essen­cial, a visita de atelier – deixar de relatar a minha última passagem por Santa Luzia de Lavos.

Há pintores que fazem das visitas ao seu atelier uma tarefa mais ou menos pre­meditada, com certos primores, certa encenação. Não falando nos artistas tími­dos ou secretos, a quem as visitas parecem vulnerabilizar, algures, o seu pudor ofici­nal ou técnico…

Para o Mário Silva, a pintura é uma experiência à flor da pele. Conversamos com o pintor e ei-lo sentado imediatamen­te, frente a uma tela, como um piloto no seu “cockpit” pronto para levantar voo. No atelier onde reina uma liberdade intui­tiva, quase caótica, acumulam-se os inu­meráveis vestígios das mais diversas expe­riências, restos duma pesquisa vivencial incessante, repartida entre a boémia cultu­ral e uma incapacidade de ocultação espi­ritual, que é marca indelével do carácter do artista.

As telas soltas já pintadas, mas ainda sem grade, estendem-se como frágeis pelí­culas ondulantes, por cima dos móveis. Umas por cima das outras, obrigam a uma manipulação difícil, para revelar este ou aquele detalhe.

Nada está oculto, aliás, e todos os ges­tos são esclarecidos pelo artista, que leva as suas sinceridades ao extremo invencível da transparência. Aquela ponta de feltro que serve para abrir os primeiros sinais sobre as telas recentemente iniciadas. As latas do produto usado para dar tons de fundo, e ao qual se vai sobrepor o óleo. Aqueles preciosos detalhes sobre marcas, e aquelas outras tintas que usa para afinar detalhes, acrescentar tons, dar velaturas…

Há dois cães enormes quase negros, o “roque” e o “bêtôvên” que têm carta bran­ca para tudo. Desestabilizam imenso as visitas, mas é preciso contar com os ani­mais, se se quer realmente conhecer o Mário Silva. A natureza tem plenos direi­tos em sua casa. Desde o reino vegetal ao animal, regista-se a presença de diversas espécies, umas mais singelas, outras mais exóticas. Recordo entre outras a presença das “pombas de gola” (aquelas que o Picasso desenhou…) e uma cobra enorme, escondida algures nos quintais ou na horta, e que o pintor tentou afugentar sem êxito…

Neste domingo concorrido há visitas que entram, amigos que batem aporta. Há coleccionadores perplexos com esta ou aquela escolha. É preciso esperar pelo pintor. Apesar disso, com tanto automóvel a estorvar o sol da Figueira, e tanta gente amontoada em ruas estreitas em busca da liberdade que a beira mar promete, sabe bem estar aqui, no silêncio de horizontes abertos de Santa Luzia de Lavos.

No pavilhão lá do fundo é onde o artista guarda a biblioteca de seu pai, o Professor Mário Silva. É sempre com grande admi­ração e enlevo que o Mário fala de seu pai. Sempre condoído pelo injusto tratamento de memória e reconhecimento que ao mesmo tem sido dado, vai folheando obras preciosas, autografadas muitas delas, numa biblioteca rara, de intenso poder evocativo, a requerer um espaço bem mais condigno para ser mantida e resguardada. Esse pavi­lhão do fundo, no primeiro andar, tem uma varanda que parece a proa dum navio. Sobre ela sopra o vento largo e salgado de toda a foz do Mondego. Dali se avistam os verdes próximos, os azuis distantes, e os montículos rebrilhantes das salinas. Dali se sai com a vista a doer de tanta luz.

Fala o pintor

– Umas vezes pinto, outras “despinto”.

O diálogo, entrecortado de uma cumpli­cidade risonha, acaba por esclarecer-me. Pintar, para o Mário, é o trabalho que tem como ponto de partida o traçado gestual, mais elaborado em configurações inten­cionais ou de lançamento intuitivo e casual, que é feito sobre a tela ainda vazia de outros acidentes. O acto de “despintar” é levado a cabo por outra forma. Primeiro, o artista faz descer sobre a tela a cortina densa de tons neutros de fundo, geralmen­te terras bastante diluídas. Essa mancha não tem praticamente nada a ver com o clássico preparo de tons de fundo, tão do conhecimento e do gosto da pintura clássi­ca. É antes pretexto para que nela surjam acidentes diversos, “janelas”, onde o artis­ta – como num “flash back” – vai desco­brir silhuetas, signos, perfis, gestos e atitu­des que irão constituir a figuração do pró­prio quadro. Esta diferenciação – que o próprio artista efectua – não deixa de demonstrar que, quer no domínio do con­ceito, quer no domínio da execução, é sobre o intencionalidade do traço, seja qual for o meio com que é executado, que repousa a estrutura aglutinante da cor, apli­cada de forma tão rápida e eficaz.

A mancha de cor por seu turno, se surge acidentalmente, é depois utilizada para enquadrar, pelo gesto que ao desenho diz respeito, ideias de casualidade significativa pelas mesmas sugeridas. Isto diz o Mário pegando num pedaço de papel manchado de tintas, que sobra da acumulação imensa de vestígios da laboração do artista.

A tarde termina, à larga mesa da sala recheada de objectos díspares, numa casa repleta de colecções, de restos da enorme convivência com outras pessoas e outros artistas. Bebemos vinho do agricultor, santolas do mar da Figueira e queijo bem curado. Há um amigo veterinário que veio cuidar graciosamente dos cães, e que conta histórias de humor negro, de santolas e cadáveres nas praias da Normandia. O vinho é óptimo e o vagar ainda dá tempo para uma discussão sobre cinema que é iniciada pela Zézinha, do modo sere­no e risonho que lhe é peculiar.

Antes dos abraços, o Mário insiste em me dar um quadro seu, por troca com um dos meus. Vou à sala onde guarda os tra­balhos feitos (seguramente a única sala da casa que é fechada à chave) e demoro imenso tempo a decidir-me. A paciência do artista é enorme.

Regresso à paz tranquila do largo ao pé da igreja de Santa Luzia de Lavos, já com o quadro debaixo do braço.

Pouco depois, flanqueado de motores ruidosos estou de novo na estrada, cheio de medo dos apressados viajantes que parecem correr furiosamente, perseguindo um futuro cheio de crispacões. Oxalá este­jam com pressa para irem ler um livro, falar de pintura ou de cinema, ver uma peça de teatro ou – quanto mais não seja – passar um alegre serão a conversar com os amigos.

E vou sorrindo e pensando:

– Obrigado Mário, boa saúde e até à próxima!…

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