Publicado no Diário de Coimbra de 22 de Agosto de 1997
Desejou o Diário de Coimbra, este ano, dedicar especial atenção à ocorrência da Bienal de Cerveira, através da publicação atempada de notícias a respeito desse significativo acontecimento. Com o certame ainda em decurso, e a vários dias do seu encerramento, é minha intenção estimular aqueles que ainda possam fazê-lo, a irem até lá acima para experimentarem os diversos prazeres que uma tal iniciativa pode envolver.
O passeio ao alto Minho já é por si mesmo aliciante. A auto-estrada que (ainda) não chega a Valença, já chega (quase) a Ponte de Lima. Indo depois à direita, pela serra, são garantidas muitas curvas a subir e a descer. Indo à esquerda (por Viana) é melhor o piso, mas mais comprida a distância, e não se está livre de apanhar umas desmoralizantes filas de trânsito.
Vila Nova de Cerveira, pequena localidade comodamente arrumada à beira do Rio Minho, evidencia já sinais visíveis da “presença das artes”. Por aqui e por ali, são já pertença da paisagem notáveis peças de arte moderna para fruição pública.
A Bienal, que tem a realização de um concurso como fundamentação básica (regulamento, concorrentes, júris, prémios, etc.), desde sempre mostrou uma vocação especial para se tornar um espaço de diálogo, de aprendizagem e de “festa-nas-artes”, arrastando um variado leque de iniciativas que interessa a quase toda a gente, devido a esse carácter de abertura e entusiasmo quase utópicos, sem os quais não sobrevivem as iniciativas deste género.
Para os jovens e até para as crianças
Para o leitor que estiver a pensar ir a Cerveira, não é preciso enumerar todo o tipo de possibilidades ali presente. A imprensa e a televisão têm vindo a publicar anúncios do certame e eu próprio não consegui, numa primeira visita de um só dia (das 15:00 às 23:00 h) “meter o nariz em tudo”. Para se rentabilizar o potencial do acontecimento, teria que se permanecer (sem tédio) toda a duração da Bienal. Mas dois ou três dias dão pano para largas mangas e, além da soberba exposição do concurso, acrescentada com delegações estrangeiras, artistas convidados, etc., existe um conjunto variado de iniciativas que podem interessar e mobilizar qualquer visitante, sem esquecer os jovens, e até as crianças.
No que me toca, lembro com enorme prazer o “mergulho” que efectuei num dos pavilhões onde funcionavam “workshops” de pintura e música (ensaiava nesse momento um interessante conjunto de música clássica). Foi ali à sombra, à vista duma exposição de novas técnicas de registo, olhando para vários artistas que pintavam e escutando música, que primeiro comecei a ler os catálogos do acontecimento. Ia no segundo ou terceiro “fino”, quando me apareceram uns amigos galegos de Vigo, que também tinham vindo à Bienal. Sendo pessoas muito integradas no avançado meio artístico da sua terra, fiquei contente por coincidirem comigo na magnífica impressão recolhida em Cerveira, quanto à variedade de mensagens, à frescura de juventude, originalidade de propostas e critério estético ali presentes.
Quanto ao futuro da Bienal, apetece desejar que prossiga e ganhe novas dimensões. De há quase 20 anos a esta parte, várias têm sido as vicissitudes enfrentadas, umas vencidas, outras não… Não me cabendo explicar tudo isso aqui, registo apenas aquilo que ouvi dizer ao próprio Comissário Geral Henrique Silva: desponta a esperança concreta de que a Bienal disponha de instalações próprias, com capacidade de levar a cabo uma permanência de iniciativas, a par do projecto já muito ventilado de que finalmente se possa constituir um museu de arte moderna com o acervo de obras entretanto acumuladas por Vila Nova de Cerveira no decurso das suas Bienais.
E Coimbra?…
Durante a conversa que mantive com o professor Henrique Silva falámos muito de Coimbra. Recordámos a grande artista que foi Túlia Saldanha, amiga comum, e da sua actividade como dirigente do Círculo de Artes Plásticas, onde Henrique Silva também expôs. Grande volta deu a nossa conversa, que chegou para rememorar tentativas feitas no passado para trazer até Coimbra ecos substanciais da Bienal de Cerveira, através duma realização adequadamente interessante. Manifestei a minha pena de que tais iniciativas se tenham gorado no passado, fazendo votos que venham a ser possíveis no futuro, já presente.
Aproveitando esta deslocação ao Norte, e atento aos anúncios de iniciativas culturais no âmbito da arte moderna, decidi fazer um desvio até Vila Nova de Famalicão e depois, por convite dos amigos de Vigo, dar um salto àquela cidade galega. Na primeira destas paragens visitei a Fundação Cupertino de Miranda, onde está patente a exposição designada “A arte, o artista e o outro”, com obras do acervo da Caixa Geral de Depósitos. Este acontecimento, servido por um catálogo de muitíssima qualidade, representa um trabalho de elevada craveira estético-pedagógica, a merecer referência de maior detalhe numa futura “conversa de pintor”.
Citando estas coisas do universo da arte moderna e contemporânea, poderá parecer desajustada a pergunta que formulo em subtítulo: e Coimbra? Ao fim e ao resto, as distâncias estão reduzidas pela melhor qualidade das estradas, e tanto se vai a Vigo, como a Cerveira, como às Caldas da Rainha (onde também se realizou uma importante bienal de artes) como a tantos outros sítios, mais perto e” mais longe. Portanto, se a questão for despropositada por ser formulada por mim, e neste mesmo sítio, não deixa de pôr-se com evidência à comunidade cultural coimbrã, com o peso da sua pertinência e o desconforto da sua continuidade.
É evidente que não é a comunidade cultural de Vila Nova de Cerveira que põe de pé toda a mecânica da sua bienal. Basta relancear o olhar pelos “curricula” inseridos nos respectivos catálogos, e ver donde são oriundas as entidades que operam e colaboram. Mas é um facto que a localidade soube dar o corpo às iniciativas, soube aproveitar os ensejos, e mais do que isso, foi adquirindo um estado de espírito positivo de abertura e receptividade, que tem sido factor de evolução, até do ponto de visto sócio-económico.
Quanto a Famalicão, a situação é muito diferente, como diferentes são sempre este tipo de universos em mutação, que à arte dizem respeito. Importante é que as coisas aconteçam, aqui por uma razão, ali por outra, e que um número crescente de consciências participe dos fenómenos, possa discuti-los e apropriá-los nas vertentes positivas da criatividade e da abertura de espírito.
Esmagou-me a urgência desse passo atravessando as enormes e luminosas salas da antiga alfândega de Vigo. Onde outrora se alinhavam emigrantes ansiosos de partida, mostram-se agora os empolgantes testemunhos da passagem dos artistas galegos por todo o mundo, eivados de força e actualidade, nessa soberba mostra chamada a “Galícia exterior”, integrada no vastíssimo programa de iniciativas que se designa como “Galícia terra única”, e que se estende por toda essa comunidade autónoma.