Publicado no Diário de Coimbra de 4 de Outubro de 1997
Venho hoje referir-me (ainda que de longe) à enorme timidez de grande número de pessoas perante a obra exposta, ou perante os conjuntos de trabalhos que se deixam ver nas chamadas “exposições”. Como se houvesse uma muralha feita de receios diversos entre essas pessoas e as obras em presença, e, como se a convivência com objectos estéticos (das mais diversas áreas) fosse uma plataforma eriçada de espinhos, onde a entrada fosse reservada, e a adesão envolvesse compromissos de gestão muito delicada.
A matéria desta “conversa” aproxima-me, portanto, do acto singelamente transcendente em que qualquer de nós, face a um trabalho de arte, se prepara para descodificar o seu conteúdo, mergulhando fundo nas diversas camadas que recobrem o seu aspecto inicial e do dilema receoso do “gostarei?/não gostarei?”. É aliás aqui, na dificuldade em formar e/ou emitir um juízo que dê uma boa imagem da nossa capacidade crítico-cultural, que se localiza um dos factores de inibição perante a obra em apreço.
Tal momento deveria constituir sempre uma oportunidade de contemplação/reflexão empenhada mas liberta (ia a dizer “feliz”…) sobre as qualidades “interiores” do objecto, e um desafio de auto-reconhecimento, pela resolução do “enigma” e pela “explicação” que haverá que proferir-se, quanto mais não seja perante a nossa própria surpresa/perplexidade. Momento esse de clarividência/espontaneidade, resultante do gosto, e do seu exercício descomprometido.
A arte obriga a pensar. Daí, a tão apetecida e tranquilizadora opção por distracções de valor fútil, pela cultura do “fait-divers”, e por tanta, tanta massificada vulgaridade.
Dum grupo de jovens atentos e duma mestra ‘forte”
De visita a um museu, vi uma vez um grupo de jovens, capitaneados por uma orientadora, sentados diante dum quadro abstracto, de concepção muito sintética, quase minimalista. Uma simples forma geométrica, sobre uma compartimentação de espaços de cores lisas, sem modulações, texturas, ou outros acidentes que conferissem ao conjunto diferenciação de planos, profundidades ou qualquer pitoresco narrativo.
Somente as proporções da figura (tendencialmente triangular), o seus desequilíbrios e dinamismo próprios, a sua lógica de apoios e intersecções nos planos circundantes constituíam motivo de debate sereno e aprofundado, e campo de treino de observação estético-filosófíco.
Passei por eles a caminho da cafetaria, onde fui tranquilamente buscar forças para uma visita prolongada. Tive tempo de passar pela livraria, folhear diversas coisas e, de regresso às galerias eles ainda lá estavam, a mestra muito gorda e muito sentada, os alunos muito compenetrados, falando cada um por sua vez, pausadamente, na avaliação dos conteúdos e na sua percepção subjectiva.
Fiquei contentíssimo e sonhei produzir um dia algo que viesse a suscitar uma observação tão cuidada como aquele quadro, sujeito a um mergulho tão profundo de atenções e a uma “exploração” tão sistemática, só comparáveis às vantagens duma transfusão directa, destinada à reanimar um corpo, sem debilitar o outro.
Depois de assistir a uns minutos daquela conversa, cheia de demoras reflexivas e entrecortada de silêncios consentidos, passei à visita das galerias, onde numerosos grupos de visitantes desfilavam mais ou menos velozmente por salas repletas de obras saturadas de eternidade, como janelas abertas para um oceano de interrogações/encantamentos.
O contraste de atitudes ali patente entre o grupo de estudantes e o fluir dos apressados turistas, obrigou-me a reflectir um pouco sobre a natureza das coisas e a qualidade de tempo que podemos, ou queremos, dedicar-lhe.
O tempo do espírito, o tempo da inteligência, não é como a espera tensa a que nos obriga um engarrafamento de trânsito. A obra que se analisa visualmente, o texto que se lê, os sons que se escutam, o movimento de gestos que perante nós desfilam como arte, desenvolvem-se no plano da eternidade. Devem habituar-nos a olhar para dentro sem receio do que está fora e podem ajudar-nos a compreender o mundo circundante sem a vertigem das profundezas do nosso interior desconhecido. Como quem se reconhece em obra feita por si mesmo, descobrindo sempre mais além das fronteiras conhecidas os novos mundos sempre disponíveis.
As ajudas e os alicerces
A leitura de qualquer trabalho de crítica que se debruce sobre uma certa mostra constitui um exercício de visitação e decifração de obras de arte, que pode configurar a atitude mais ou menos correcta e documentada para entender não só aquele, mas qualquer outro acontecimento do mesmo género.
Uma pessoa que se habitue a visitar acontecimentos artísticos, ver espectáculos de arte, cinema, teatro, ballet, etc., tendo o cuidado posterior de compaginar a sua própria versão com as da crítica da especialidade, acaba por ter uma noção das maneiras de abordar outros acontecimentos posteriores.
Daí a poder avaliar comparativamente o trabalho do crítico A, com o do crítico B, vai um passo (às vezes largo…). Feito todo esse trabalho, está o sujeito na posse duma aparelhagem crítica razoavelmente autónoma se, entretanto, não se esquecer de ir enriquecendo a sua reserva de referências culturais, que são um alicerce indispensável para uma visão globalizante dos “mundos” que nos cercam.
Dada a limitada extensão destas conversas ninguém esperaria que eu fosse esgotar hoje o tema que se sintetiza no título da crónica. Vale a pena, no entanto, pensar um pouco nos pontos que são referidos, e dedicar alguma da nossa atenção à “eternidade” interrogante das obras que se nos oferecem como repositório doutras visões do mundo, doutras possibilidades de “o” conhecermos e doutras capacidades de “nos” descobrirmos.
A grande vantagem da arte é não nos encerrar numa única verdade, abrindo para a transcendência uma multiplicidade de caminhos que – embora exigentes – não cansam, e – embora complexos – não desiludem.
Lugar aos novos, abertura sobre a modernidade
Numa iniciativa original e com fundo de limitada mas interessante generosidade, deu início a Galeria Conimbricense a um concurso de “arte jovem”. O resultado, com exposição subsequente e artistas premiados, fica para ser consolidado em futuras versões (e adaptado a um novo espaço de que a galeria carece), mas constitui atitude louvável num meio onde o lugar aos novos (e à novidade…) está tão cerceado pela ausência e pelo alheamento. Os participantes (a começar no próprio júri, adequadamente constituído para o efeito..) retiraram do acontecimento algum genuíno prazer, esperando que o futuro consolide as suas legítimas esperanças.