Maria João Franco expõe no Museu Santos Rocha

Publicado no Diário de Coimbra de 5 de Dezembro de 1997

Maria João está ali e explica todo o sentido daquilo que procura. Eu olho-a, olho os desenhos espalhados no chão, a pasta mal arrumada cheia de estudos, o sofá já coberto de telas man­chadas de traços e cores, e mal a oiço. É quase inútil aquilo que dizem os artistas nestes instantes, tentando facilitar o acesso ao entendimento da obra. O olhar perde-se por entre o encantamento dos objectos, a sua presença cheia de referências, e a vizinhança de utensílios evocativos do sentido e da brevidade da vida. A minha atenção prende-se às mesas de trabalho, ao chão, às cadeiras e cavaletes onde se dis­tribuem casualmente os vestí­gios do trabalho. No ar, um cheiro a óleo, a vernizes, a

materiais voláteis diversos causam-me, tal como o branco das paredes, uma tontura cheia de prazer, uma quase embriaguez. Alguns quadros esperam ainda pelos últimos momentos da sua criação. A cor, um mínimo de cor – na maioria dos seus trabalhos. Economia de meios, austeridade de processos, rejeição da facili­dade, pavor do decorativismo.

A memória do corpo

Por sobre algumas telas surgem figurações monumentalizadas do corpo, em cap­tações seccionadas do tronco, intencionalmente despojadas de todos os ornamentos individualizantes dos seres retratados. Nenhum dos contornos mais fugazes ou delicados, nenhum detalhe que recorde o traçado expressivo da fisiono­mia, a vibração articulada dos dedos ou a ondulação harmo­niosa dos gestos. Corpos como nuvens, espontaneamente delineados pelo coleante trace­jado do carvão ou corpos mis­teriosamente configurados, abertos na cor de fundo como árvores cortadas, sem a flutu­ação airosa dos ramos ou qual­quer outro adorno natural.

Imaginando os percursos de tais “achamentos”, fácil é imaginar que, se a figuração se insinua de modo apetecível ou trivial, rápida é a mão que descentra, apaga, encobre e “desfeia” – se necessário – essa leitura mais fácil ou a alusão mais imediatista e superficial do visível.

Que coisa resta, então, dessa procura crispada, desse desejo de mistério mais denso? Será normalmente desejável este labor acidentado de “tornar com­plexo” o mundo? Ou será que o mundo é algo que possamos ler à primeira vista, algo que pos­samos abarcar e compreender desde o primeiro instante de dor e deslumbramento?

As cidades e florestas subjacentes

Entre esses corpos, enfim, como barcos solidamente ancorados nos mais profundos odores da alma e o horizonte de cores trespassadas de mis­térios que lhes serve de amparo e de suporte, desenvolve-se um permanente combate. Dum lado a presença das vibrações sacramentais da noite antiga, doutro o eco distante das pais­agens enormes do sonho e da criação. E nesta “pintura detrás da pintura”, fruto do acaso e da necessidade, que surge o leque de visões misteriosas que é contracampo das interpretações do corpo.

Seja nos trabalhos deste ciclo, ou em quaisquer outros dos que conheço, o labor da artista cessa no momento exac­to em que se revela o mistério, e a plurivalência da sua leitura é tanto mais eficaz quanto menor a elaboração (aparente) da procura. Como se tivesse de ser “fácil” a produção das “casualidades” que revelam no plano do suporte toda uma vastidão de sugestões que oscilam entre o estritamente poético e o solidamente plásti­co. O respeito assim revelado pela essencialidade da superfí­cie pictórica revela o carácter de modernidade da obra, por ser um recurso de desenvolvi­mento que despreza con­venções tecnicistas de repre­sentação do espaço, e pelo rigor de utilização dos elemen­tos da linguagem.

A expressão cromática desenvolvida por Maria João Franco centra-se em torno de cores de tons fortes que oscil­am entre negros e vermelhos de diversas categorias, o branco e as terras, onde as desocultações são obtidas por toda uma sorte de efeitos, sistematicamente libertas do compromisso do uso do pincel. A própria matéria cromática é independente do convencionalismo das cores fabricadas especificamente para o efeito, com recursos a vernizes e betumes de densi­dades e colorações diversas. Uma ou outra ocorrência fora do alinhamento de austeridade assim descrito, raramente tem lugar. Se surge, é sempre mar­cada por uma vocação de sotur­na solenidade, como que no limiar da sua própria ausência.

Todo a acção plástica é emocionalmente marcada pela inten­sidade, desde a intervenção mais simples à de mais radical efeito. Assim se dá a compreender a densidade desta pintura, rica de transparências ameaçadoramente circunscritas por imensas vagas de sombra e de sonho. De sombra e sonho, digo bem, porque tanto nos ameaça com a escuridão da noite e a densidade do sangue, como nos acalenta com o deslumbramento das neblinas matinais.

Na Figueira da Foz à nossa espera

Patente ao público, desde o dia 28 do mês de Novembro, encontra-se no Museu Santos Rocha, na Figueira da Foz, uma exposição de Maria João Franco. Ali iremos encontrar nem só as “Histórias do Corpo” (título da exposição), nem só as cidades e florestas subjacentes. Outras aborda­gens, outras aventuras, outras experiências nos esperam. A luz, as sombras, os monumen­tos distantes, os céus e os abis­mos de fogo e a simples matéria de que se compõe o mundo.

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