Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Janeiro de 1998
Sempre que vou a Lisboa e me chega o tempo, meto-me num cacilheiro e vou até à outra banda. Nem que seja só para ir e vir, para esquecer o caos, a amálgama, os fumos e a pressa. Vou lá para cima, para o tombadilho, respirar o ar enorme do meio do rio, acamaradar com as gaivotas e sonhar viagens.
Nos dias de maré rija, quando o barco baloiça mais, consolo-me das saudades das lanchas açoreanas, embaladas vigorosamente pelas ondas do mar alto, e lamento que o mundo não seja todo feito assim, de frescor e liberdade.
Desta vez, porém, foi diferente. À saída do barco, tomei o autocarro que vai para o Cristo Rei. Saindo na Rua Capitão Leitão, lá fui perguntando caminho em busca dum sítio chamado “Casa da Cerca”. Andando um pedaço, já por ruas estreitas, lá se chega finalmente, sem perder o ensejo para referenciar outros locais já familiares, como o Teatro Municipal de Almada.
A “Casa da Cerca” está instalada num antigo palácio do Século XVIII, a que os comentários arquitectónicos atribuem linha barroca de aura “já romântica”. Certo é que o mais valioso capital deste elegante edifício é a sua localização. Apropriadamente edificado junto dum larguinho que tem o nome de Largo da Boca do Vento, está assente num pequeno planalto que domina o Tejo, o seu estuário por inteiro, e a cidade de Lisboa, repentinamente ali diante como que ao alcance da mão que, sonhando, se estende até ao
outro lado do rio. E o grande ar fresco, as árvores de ramos oscilantes, as estátuas e a erva curta fazem tudo dentro de nós, subitamente suspensos, para além das coisas e dos casos comezinhos.
Lá dentro a exposição de José Mouga, que tem o título genérico “Anos de risco/desenho 1977-1997”.
Comprado o elucidativo catálogo (124 páginas de texto e reproduções) nele fica plasmada a memória do acontecimento que tem a duração de três meses (Novembro de 97 a Janeiro de 98), e que dispõe ainda dum sintético, mas útil, “jornal de exposição”.
Muito haveria a dizer a respeito do acontecimento no seu todo, incluído o esmero estético, certamente devido a todo o grupo realizador sob a direcção do pintor Rogério Ribeiro.
Particularmente substancial é a forma como se desenvolve a exposição, que atinge as 161 peças, subdivididas em 16 conjuntos/capítulos, cujos títulos –”memórias do natural”, “bestiário”, “ossos”, “memórias tranquilas”, “escritos na cal”, “fragmentos do natural”, “ensaio sobre a solidão” etc. – aparecem referenciados por textos do diário do pintor. Tais textos, sem assumirem o aspecto simplista da “legenda” ou da “alusão” linear, contextualizam poeticamente todo o labor do artista de forma a amplificar o “prazer de ver” que serenamente se apodera do visitante.
Quanto aos conjuntos/capítulos plasticamente considerados, estão devidamente alinhados pela simplicidade densa das linguagens respectivas e agrupados por caracterizações técnicas de elevado critério oficinal.
Olhando assim José Mouga é possível a todo o momento efectuar uma discussão muito fértil da fundamentalidade das técnicas e dos materiais em presença a partir de cada ideia como formulação plástico-poética.
Assim será também, quer se deseje fazer uma abordagem do generoso conteúdo pedagógico, quer se procure a densidade doutros níveis de leitura, cruzando linguagens e contextos da forma mais apetecível e mais propícia ao estado de espírito de cada observador.
Assumindo-se a “Casa da Cerca” como um Centro de Arte Contemporânea é possível, neste caso, transformar a modernidade numa atitude que, sem deixar de se situar a um nível de densidade conceptual adequado permite, e até solicita, a participação dum número muito alargado de sensibilidades. Isto, sem o recurso a esforços de leitura elaboradamente codificados, que – tal como tenho podido verificar noutras realizações com essa tipificação – confinam as “possibilidades de ver” a critérios próximos da rarefacção ou da pura e simples nulidade.
Regressar a Coimbra e encontrar tudo mudado
A “Lisboarte” é uma iniciativa com o patrocínio de Câmara Municipal de Lisboa, em que um certo número de galerias se apresenta minimamente organizado sob a forma de realizações conjuntas (inaugurações simultâneas, por exemplo) sendo publicado um roteiro com mapa dessas galerias e das suas realizações e havendo na fachada dos edifícios respectivos uma bandeirola que assinala o ponto onde se encontra a exposição.
Esta ideia obedece apenas aos mínimos, e nem toda a gente que vai a Lisboa chega a ter conhecimento sequer duma pequena parte das realizações ali em curso. É de notar que também por iniciativa municipal é publicado em Lisboa um roteiro alargado de todo o tipo de iniciativas culturais, camarárias ou não. Considerando a avareza dos meios de comunicação quanto a este tipo de noticiário, é uma iniciativa de interesse. Se juntarmos a isso a imensa dispersão geográfica dos locais de arte e cultura, a disparidade de calendários, horários e outras particularidades, e a “complexidade” dos meios de transporte, fica compreendida a insularização do meio artístico-cultural.
Quanto ao Porto, chegam-me notícias doutra forma de dinamização: a congeminação em curso da chamada “rua das galerias”, com as mais diversas iniciativas anexas, pela concentração dum certo número de estabelecimentos de arte e convivência cultural na Rua Miguel Bombarda ao Palácio de Cristal.
O título deste último parágrafo é apenas, confesso, para lançar um pouquito de confusão. Com as iniciativas que vão surgindo em Lisboa e no Porto para dar dinâmica e coesão à actividade das galerias de arte, vêm-me à memória umas sugestões que dei, nuns artigos sobre o assunto do comércio de arte e publicados no DC em Junho de 1994.
O número de galerias existente em Coimbra, e dos outros espaços dedicados à ocorrência de acontecimentos de arte já justifica, com efeito, algum esforço conjunto de modo a publicitar um calendário de acontecimentos, colocando no mapa a localização dos eventos, e formar uma espécie de roteiro para os interessados. Isto para ficar por uma ideia mínima e não levantar a ventania das utópicas intenções…
Todos sabemos a dificuldade que estas coisas envolvem e quão distanciadas as pessoas se encontram umas das outras. Façamos votos entretanto que um dia destes, de regresso duma viagem longe, encontremos realmente tudo mudado!…