Publicado no Diário de Coimbra de 5 de Outubro de 1998
Nunca vi o Monte Fuji porque nunca fui ao Japão, e tenho pena.
Conheço-o em muitos dos seus aspectos plástico-simbólicos, pelas abundantes referências que lhe são feitas através da divulgação da riquíssima cultura Japonesa.
Por diversos motivos que vão explicados, e por outros que não cabem nesta crónica, é natural que vos diga que olhei para os trabalhos de Hiroshi Umezaki com alguma da mesma perplexa admiração com que contemplaria a montanha sagrada e os seus altos cumes gelados e distantes.
Há na aplicação oificinal e na estrutura interna dos trabalhos deste artista uma energia metódica que causa espanto, e merece respeito.
A flutuação no azul e a espada do Samurai
Analisemos contudo o desenvolvimento das obras apresentadas e reconheçamos nelas, desde já, a existência de diversos níveis de leitura e a sobreposição de sinais de densidade diferente, conforme dizem respeito a situações mais remotamente estruturantes da sensibilidade do seu autor, ou se reportam à sua necessidade de evidenciar preocupações de carácter inter-cultural.
Essa necessidade, que se denuncia sem lhe retirar toda a respectiva legitimidade é, como evidente se torna, aquela porção do mundo que não nasceu com Hiroshi.
Quanto ao mistério da flutuação no azul, aos continentes vibrantes de luzes frias, à íntima e negra fenda rasgada pela adaga do samurai, é claro que não
foram concebidos nem à mesma hora nem na mesma latitude que a lembrança das pedras de muros mortos e esquecidos, ou de outros vestígios da sua experiência de viajante diligente e empenhado.
Às massas de estruturação cromática de H.U., vibrantes pelo trabalho de densificação e descoberta de efeitos, encontram-se sobrepostos certos acidentes que lhe dão sentido plástico. Alguns, mais perto da estrutura sintáctica das obras (manchas concentradas de cor, relevos em trompe-1’oeil) reforçam o seu carácter abstractizante. Outras, de vocação quase simbólica, são verdadeiras fracturas no recôndito das quais se abre um grito de cor fina, um traço veloz e doloroso como uma lâmina.
Tais são alguns dos argumentos essenciais que nos apresenta Hiroshi Umezaki, com o seu dedicado exercício de servidão artística que é típico dos trabalhadores de espírito metódico e incansável.
O acrescentamento doutra ordem de elementos macro-figurativos, corpos humanos ou estruturas quase arqueológicas duma cultura que se deixou deteriorar pelo tempo e pelo esquecimento de si própria, constituem uma última fase do trabalho do artista, nitidamente destinado a implicar-nos no seu esforço e de dar a ver, com um olhar renovado, coisas que há muito conhecemos.
O propósito tem uma dose reconhecível de generosidade intercultural, mas as pedras antigas das casas em ruínas dos habitantes ausentes não têm aquela vibração deslumbrante, e a sua configuração anárquica e decrépita encontra-se ali indisfarçavelmente artificializada por um esmerado espírito de ordenação gráfica.
Assinalo um facto demonstrativo da perspicácia do artista como agente transformador de materiais sensíveis, que valoriza a atitude estética desde o momento da eleição dos meios e da produção do suporte. Na segunda sala {Galeria do Jardim) interpondo alguns dos ciclos presentes, nota-se a presença de bases da mesma dimensão dos trabalhos expostos, inteiramente recobertas com o azul preferido do autor, sem qualquer outra cobertura ou intervenção.
As imagens caudalosas e a vocação da alegria
A comparação das mentalidades orientais com aquelas que nos são próprias, quanto às gerações já vividas, terá um sentido apenas baseado no gosto pela diferença e no sentido mágico da viagem. …
Se considerarmos porém as gerações em formação, num mundo que depende fundamentalmente de atitudes competitivas e de risco, quanto ao esforço de aprendizagem e domínio das realidades, será também (só) isso?
Será que o Oriente está assim tão longe de nós que nos possamos interessar pelo Monte Fuji apenas como uma ideia abstracta? Será que a espantosa vocação de alegria desprendida que marca de graça e de espontaneidade a nossa juventude é compaginável com um mundo de comboios ultra rápidos e de mensagens transmitidas em milhões de canais, à velocidade das estrelas?
No século XVI foram alguns jovens portugueses até ao Japão em busca de fortuna e conhecimento.
Deixaram por lá a primeira espingarda que atirou tiros no Império do Sol Nascente, e algumas outras coisas mais subtis de que os povos guardam a memória respectiva.
À magnífica juventude que faz parte de mim e está tão longe como eu da férrea e pertinaz disciplina japonesa, pergunto:
– Se o nosso olhar for rápido como um clarão conseguiremos captar duma só vez, por instinto ou felicidade, toda a complexidade do mundo? E se, pelo contrário, para conseguirmos o entendimento da vida e o aperfeiçoamento das suas melhores ferramentas formos obrigados ao arrojo da persistência e à coragem do bom senso, seremos também capazes?
Alexandre Ramires e a biblioteca dos saberes na imagem
Acrescentando às emoções fortes da visita à exposição de Hiroshi Umezaki, vale-me neste ponto do meu questionamento uma pessoa que tem uma vastíssima experiência no domínio da colheita de meios visuais, sua ordenação sistemática e sua utilização consequente.
Tendo começado cedo a penetrar os segredos da aprendizagem das ciências pela aceleração das suas visualidades, licenciou-se em Física, foi professor e, mais do que isso, um apaixonado espectador, organizador e divulgador de imagens, no que elas possuem como instrumento cultural e científico de futuro.
Não cabendo na parte final da “conversa” de hoje mais do que uma breve introdução a esta fascinante matéria, que iremos ver tratada na próxima semana com a valiosa ajuda de Alexandre Ramires, pedir-Ihe-ei apenas que nos diga se também ele, alguma vez, aspirou ver de perto a brancura serena dos altos cumes do Monte Fuji..
Alexandre Ramires:
– Os Montes Fuji, símbolos dos horizontes do nosso entendimento, sim: a clareza do sentido de culturas que, lidos, entendidas e partilhadas nos fazem aproximar e sentir o futuro como terreno de diálogo, com imagens repositório das ideias a partilhar!
– Obrigado pela resposta, que vale como exaltação de atitudes. E, então, até para a semana!…