Publicado Diário de Coimbra 12 de Outubro de 1998
Alexandre Ramires está rodeado de aparelhos de registo de imagem e de som. O laboratório não é vulgar nem simples, pelo intrincado de ligações e componentes, mas não atinge expressão superlativa nem no seu custo nem em sofisticação técnica.
Ali, o único luxo que está patente é o da paixão pelo que se regista e a forma como isso é feito.
Num pequeno aparelho adequado, dum lado entram as matérias primas da imaginação, do outro saem narrativas animadas de mensagens culturais e conteúdos estéticos inesperados. Fotografias ou os seus negativos, slides, filmes de vário tipo, originais pintados ou desenhados seja em que material for, recortes de jornais antigos, outros impressos, coisas escritas à mão, tudo que seja documento visualizável serve de combustível à operação transfiguradora da imaginação dinâmica e da memória reflexiva.
Esta é apenas uma das habilidades laterais do artista. E não pequena, por minha fé! Tudo o que entra pela porta do seu olhar sai transfigurado para o vídeo, pronto para a comunicação, para a partilha de mensagens. As captações segmentadas de uma imagem, a sua repetição, os descentramentos e desfocagens, os afastamentos, as aproximações e as inversões de cor dão a uma mesma visão o efeito da pluralidade, do movimento, do conteúdo interior.
Em vez do tropel ininteligível dos “vídeo clip” de milhões de dólares, do filme ultra rápido das mensagens subliminares, da mensagem caótica que dá a entender tudo e não esclarece nada, a maximização inteligente dum momento privilegiado do olhar. A descoberta dum rosto na multidão. O gesto que poisa suavemente sobre uma ideia. Um instante de surpresa, de receio, de carinho ou de entusiasmo que não tinha sido visto antes por ninguém.
Das conferências na Vanderbilt ao serviço cívico em Trás-os-Montes
Refrências curriculares? Vejamos: A revista Zorro desde o número um, cinema diário desde os 11 aos 17 anos, o jornal todos os dias (ainda a doze tostões), os cromos da História Natural, da Conquista do Oeste e da História de Portugal, a “Science et Vie” e a “Stientific American” desde muito cedo. Aos 18 anos ala para a América dos anos da era Nixon, do inferno na Indochina e do Black Power! Um rapaz nascido em 1955 em Olhão, na parte Sul de Portugal ainda não violentado pêlos excessos turísticos, encantado pelas frequentes conferências na Vanderbilt Universify, em Nashville, Tennessee, que frequentava pela mão de um seu tio, professor de língua portuguesa e especialista em Fernando Pessoa.
Em 1974, uma clara opção por Portugal. Serviço Cívico em Trás-os-Montes, em tarefa de Recolha de Cultura Popular. A equipa era chefiada por Michel Giacometti, prestigiado observador e estudioso do nosso património cultural. Desse momento especialíssimo foram retidas ideias principais, como a da cultura da comunicação e o sentido da memória.
A experiência do astronauta em plena sala de aula
Em Coimbra início do curso de Física. Esperam-no 6 anos de actividades intensas, substancial evolução no conhecimento e evolução das sociedades e na aquisição da racionalidade científica. Permanece 5 anos na Direcção do Centro de Estudos Cinematográficos, onde consolida a noção de que é efémera a acção da imagem como simples veículo de enredos emocionais e consciencializa a necessidade de organizar as bibliotecas da visualidade que identifiquem, cataloguem e disponibilizem os seus conteúdos. Inicia a experiência de filmagem de factos com vocação histórica que se arriscavam ao olvido.
Já nas suas funções de professor, aprofunda a ideia de que na lógica do consumo das imagens, tal como os meios de comunicação no-los apresentam, impera uma autêntica ditadura do ritmo que não permite a leitura de códigos e a incorporação do saber.
Fala-nos Alexandre Ramires:
– Houve imagens que me ficaram pela sua tremenda eficácia: um astronauta na lua com um martelo e uma pena. Quando deixa cair os dois objectos vê-se claramente que caem lado a lado. Na disciplina de Física havia a dificuldade de comunicar o conceito de que a força de gravidade actua da mesma maneira sobre dois corpos de massas diferentes. –
Visto o filme, poupava imenso esforço de argumentação e facilitava a memorização da ideia Antes do formalismo matemático era possível partilhar mecanismos de verificação mais simples e directos. Esta utilização de filmes rompia com a lógica da ida ao cinema que não permite uma reflexão e apenas viabiliza a percepção superficial da historieta e do enredo.
Não pôr fronteiras ao que é novo
C.B. – Vejo portanto que o esforço que podia ter resultado na aparição na nossa praça de mais um cinéfilo competente deu lugar à perspectiva do recolector e organizador de imagens, opção a meu ver mais generosa porque menos centrada na personalização da sua própria mensagem. Poderei concluir que é portanto um optimista e que não vacilou perante a massificação dos vídeos?
AR – Sou optimista porque penso que as sociedades têm evoluído muito e que não se devem pôr fronteiras ao que é novo.
Acontece que as tecnologias não têm sido aproveitadas para o que é mais útil. Lembro-me do debate acalorado que noutras épocas foi travado com aqueles que sustentavam que essa massificação era catastrófica e que iria acarretar entre outras coisas a morte do cinema.
Acho que o futuro exige uma partilha intensa de olhares, e que é por seu intermédio que as gerações podem captar a experiência e o conhecimento das anteriores sem ter que cair nos mesmos erros. É necessário que a memória visual esteja disponível e organizada, que atinja a dignidade imperecível da palavra escrita e que encurte caminhos na comunicação do pensamento e da experiência.
C.B. – Começou portanto a efectuar essa recolecção no começo dos anos oitenta. Diga-me no que resultaram então estes quase vinte anos de trabalho.
AR – Inicialmente colhia elementos de trabalho apenas na área da minha licenciatura, para meu uso próprio. Com a evolução da experiência, passei também a recolher, classificar e disponibilizar assuntos dum leque muito aberto de conhecimentos para ceder a pessoas neles interessados. Como consequência fiai solicitado a organizar diversas videotecas o que me deu a ocasião de colocar a experiência acumulada ao serviço de instituições escolares, autárquicas etc. O meu arquivo pessoal atingiu mais de sete mil e quinhentas cassettes gravadas que contemplam todas as áreas do conhecimento e que abrange centenas de milhares de conteúdos devidamente referenciados.
C.B. – Se bem percebo trata-se dum trabalho de longa duração que confere às suas referências um cunho de universalidade, tal como era entendido pela cultura renascentista.
AR – O simples trabalho de identificação dos temas a classificar e a respectiva riqueza e diversidade tem-me revelado a importância de não confinar a aprendizagem ao território exíguo da especialização.
Há tanta coisa de interessante no universo do saber que vale a pena alargar a nossa curiosidade em todas as direcções. Aliás, a curiosidade que permite traçar pontes entre continentes de conhecimento aparentemente afastados é a mesma que permite viver em clima de festival de cinema no mundo caótico dos meios de comunicação por imagens.
C.B. – Fica por abordar o maravilhoso das exposições que tem realizado no âmbito do seu trabalho como director da Imagoteca dos Serviços Culturais da Cidade de Coimbra e toda a respectiva dimensão histórico-antropológica. O espaço é curto, fica para a próxima ocasião!…