Despedida de um pintor sem dizer seu nome

 

Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Outubro de 1998

Não andei com ele na escola nem fomos do mesmo tempo na tropa. Não discutimos nas mesmas tertúlias nem nos zangámos nos mesmos debates. Não nos tratáva­mos por tu, não tínhamos confiança. Não éramos da mesma terra nem chamávamos um pelo outro.

A decência de modéstia que a sociedade de hoje dispensa à presença natural do artista, faz-me escolher este modo para fazer a evocação dum pintor nosso, recentemente desaparecido. Certo de que a maioria dos que me lêem sabem de quem se trata, confio à curiosidade daqueles a quem o facto tenha passado despercebido a virtude dum esclarecimento sensível e ausente dos gestos vibrantemente inúteis, do vocabulário gongórico das necrologias de circunstância, e da presença forçada dos intrusos de última hora.

Que coisa, aliás, poderá dizer-se na morte de um pintor que não possa

dizer-se na morte doutra pessoa qual­quer?

E que actos, que celebrações, que homenagens e que gestos poderão servir a um colectivo para se despedir de alguém que fica, apesar de tudo, na presença do olhar de todos os que tiverem o privilégio de lhe contemplar a obra?

Os exorcismos vibrantes e as solenes exéquias que a sociedade reserva às fig­uras do poder e aos ditos “grandes do mundo” têm bem pouca utilidade para verdadeiro consolo das almas. Nunca conversei de facto com uma alma. Mas se aquilo que conheço da minha é de ter em conta, vale bem mais o silêncio sen­sibilizado que o alarido dos fogos fátu­os. E da morte do pintor, se se fala muito ou pouco, se se segreda apenas, se poucos souberam, se nenhum jornal disse, pouco realmente importa. Se sou­bermos olhar a sua obra viva, se quiser­mos através dela contemplar um pouco de nós mesmos, fica o seu olhar dentro do nosso.

É esse o elogio, o ensejo de paz e o campo de repouso do pintor.

Nota do Autor:

num autocarro da linha sete, perguntou-me dias depois um senhor desconhecido quem era o pintor a que me referia na minha crónica anónima. Respondi-lhe que se tratava de António Pimentel, no exacto momento em que, apressadamente, já ia saindo do autocarro.

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