Publicado no Diário de Coimbra de 12 de Outubro de 1998
Filhos da banda desenhada e do cinema, não se cansam os jovens da minha geração de penetrar cada vez mais fundo na origem desses e doutros fenómenos, que nos acompanham desde o dealbar do nosso entendimento do mundo e dos seus mecanismos prodigiosos.
Nos fundos do cofre dessas memórias muitas são as referências e inesgotáveis as raízes.
As estampas de Épinal fazem parte delas e, ao revisitá-las, temos aquela sensação complexa de entrar numa casa nossa conhecida, antiga e carregada de aromas que nos embalam até ao berço da nossa imaginação.
Na Casa Municipal da Cultura, com apoio da Alliance Française encontra-se até 2 de Maio uma exposição de tais objectos artísticos produzidos na famosa e antiga “imagerie” Pellerin de Épinal, cidade milenar banhada pelo Mosela, cercada de grandes florestas (os Vosgos) e recheada de parques verdes, em contacto íntimo com regiões de grande projecção, a Lorena, a Alsácia, o Franco Condado e a Champagne.
As estampas de Épinal, descendentes das antigas tradições europeias de produção de imagens que, desde a idade média, faziam ampla divulgação de temas religiosos e profanos, têm o seu momento de grande expansão no começo do Sec. XIX com a narrativa gráfica dos sucessos napoleónicos.
Prosseguindo uma evolução recheada de temas da mais destacada popularidade e pitoresco, os herdeiros de Pellerin chegam, aos dias de hoje, como exemplo notável de conservação de um património inestimável.
O romance da Raposa e outras coisas
De notar que nos começos do Sec. XX a venda de estampas de Épinal (mormente em folhas volantes de pequeno formato) atingia um montante de 13 milhões de exemplares anuais, que eram exportadas para todo o mundo (Portugal, incluído). Não vou poder abordar os aspectos técnicos da sua obtenção, por falta de espaço. Apenas refiro que beberam nas antigas técnicas da xilogravura e que as tiragens mantiveram sempre o carácter e a autenticidade dum produto semiartesanal. A decoração foi sempre singela e o colorido simples mas de efeito expressivo. A fabricação mecânica do papel, suporte especificamente adequado para o efeito da estampagem, é a única tarefa que se mantém praticamente idêntica à que sempre foi.
Aos bons leitores de Aquilino (e são muitos) ocorre-me citar o “Romance da Raposa”, cujas ilustrações são da autoria de Benjamin Rabier, nome destacável da imensa quantidade de artistas que participaram no enorme movimento de criatividade que foi o da renovação das estampas de Épinal através dos tempos.
É no seio deste turbilhão de grafismos que surge, em 1889, já não em folhas volantes, mas sob a forma de jornal ilustrado, “A Família Fenouillard”, um dos mais remotos começos da actual banda desenhada, a alinhar com outras referências históricas, todas muito ciosas do seu respectivo e genuíno significado histórico.
Visitada a exposição, apreciadas lenta e gostosamente todas as estampas, olhado o vídeo ali disponível, penso que é de reflectir muito seriamente acerca da maneira exemplar como a cidade de Épinal tem sabido manter esta tradição artística e cultural. A criação de um museu e todo um sem número de iniciativas e interesses ligados a este fenómeno são motivo duma actividade criativa permanente e um dos principais factores de projecção da cidade. Sem esquecer que constituem uma fonte de trabalho e proveito, a que um número de 190 000 visitantes em 1997 trouxe a justificada consagração.
Cyph, outra presença de França
Com um pseudónimo cifrado, resultante de letras retiradas do seu próprio nome, aparece-nos na Galeria do Átrio da Casa Municipal da Cultura, também até 2 de Maio, a obra de um escultor oriundo das costas atlânticas do país de França.
Formado pela escola de Belas Artes de Paris, e activo em Nantes como professor de desenho, faz da escultura a sua actividade de paixão.
Seguindo uma metodologia que tenho repetidas vezes recomendado aos meus atentos leitores, procurei falar com o artista, para poder acrescentar à minha própria leitura o conhecimento sensibilizado do “fazer das coisas”.
A obra em si revelara-me (em visita anterior) um sentimento dulcificado e poético das formas esculpidas, onde está presente a essencialidade afectiva e sensual das coisas iniciais e profundas. Nuvens como nuvens. Vagas como vagas. Vento como vento. Ou o simples eco de tais seres, posteriormente designados como tal. Corpos de mulher como pretexto de evocações subtis, distanciadas da referência explícita, ou da acentuação gratuita. “Correndo o risco de ser mal entendido, posso dizer que o corpo da mulher não me interessa. Utilizo-o apenas como ponto de partida para criar formas”.
Podendo pensar que esta exposição, constituída exclusivamente por peças de reduzidas dimensões, reflecte a preferência do autor pelos pequenos formatos, tal não se verifica. São os mais de mil km que nos separam de Nantes que a isso obrigam. E a consulta do livro onde se documenta a actividade de Cyph demonstra isso mesmo, dando a conhecer a sua produção de peças de dimensão mais notável, algumas usadas como elementos de decoração pública.
Outra evidência patente na Galeria do Átrio é a multiplicidade de materiais e técnicas a que Cyph dedica a sua atenção. O alumínio fundido de forma inovadora, conforme me explicou, os diversos tipos de utilização do bronze, tirando partido da complexidade e riqueza deste material, os vários tipos de mármore, onde se nota um gosto particular pela exploração da cor dos veios e sua utilização como acidente próprio da forma alcançada, e ainda outras qualidades de pedra como a ardósia.
Especialmente curioso me pareceu, quanto ao bronze, o tipo de experiências levadas a cabo por Cyph (aqui apenas patente em obras de pequena dimensão, de carácter experimental) onde a forma esculpida pelo artista se limita a configurar um dos lados da volumetria das peças. O bronze vertido nestas, é depois convenientemente terminado com todas as .respectivas operações de acabamento, patine etc., no lado que diz respeito a essa face trabalhada. A parte oposta fica a revelar os acasos ou acidentes que se formam no “avesso” do bronze acabado, onde o artista, aproveitando igualmente os desperdícios de forma que os rebordos apresentam, se compraz em registar todos os efeitos plásticos possíveis. Estas obras, que também podem ser obtidas pela fractura intencional de peças integralmente esculpidas e moldadas, adquirem o carácter de achados fortuitos ou de objectos lançados pelas ondas numa praia, que esperam que alguém as encontre casualmente.
Nesta brevíssima explicação, apenas compreensível em face dos exemplos reais, dar-nos-emos conta do universo de possibilidades que a escultura oferece, e da complexidade técnica e operacional que à mesma diz respeito, o que lhe confere a nobreza duma arte maior que realmente é.
Desenhos de Arpad
Sem aduzir por agora qualquer comentário, dado que já esgotei por hoje as medidas padrão desta coluna, não desejaria deixar de referir a notável exposição presente na Sala da Cidade (o antigo refeitório do mosteiro de Santa Cruz) com os desenhos de Arpad Szenes. Fica no entanto o estimado leitor convidado a visitar até 31 de Maio este conjunto de cerca de 100 desenhos reunidos e expostos pelas Fundações Arpad Szenes/Vieira da Silva e Calouste Gulbenkian quando da comemoração do centenário do nascimento do artista.