Publicado Diário de Coimbra 26 de Novembro de 1998
É uma derrota da civilização e um péssimo hábito não falar com os vizinhos.
Às vezes ali ao pé da porta, anos e anos, e nem bom dia nem boa tarde. Acontece infelizmente cada vez mais nas aglomerações citadinas feitas à pressa.
Por mim, não gostaria jamais de despir-me duma certa espontaneidade de franqueza a que me habituei com os meus Avós. Falar com pessoas, falar das pessoas! Falar de mim e aprender o mundo comigo e com os outros. Expôr-me, arriscando um pouco do meu segredo. Expôr-me, arriscando aprender algo interessante ou fazer um novo amigo. É bem pequeno o risco para uma esperança tão preciosa!
Para certos alguéns a opção certa é a do silêncio, escondendo o que realmente pensam. Tentar construir mistério e garantir altitude dissimulando uma verdade por vezes bem raquítica. E há ainda aquele processo terrível de não falar das coisas que acontecem, para fazer de conta que elas não acontecem. Ou silenciar a existência do outro, não olhando para ele, como quem diz:
– Não falo em ti. Não olho na tua direcção. Para que te afundes no silêncio e nele morras, ignorado.
É um processo terrível, mas usual. Prefiro mil vezes julgar como aquele meu amigo que é poeta e que diz:
– Quanto mais urbano, mais humano!
Mas mudemos de assunto, antes que nos assaltem as dúvidas.
A Galeria de Arte Vária, ali a Celas
O nome que faz subtítulo é duma galeria que fica perto da Cruz de Celas, que já foi monumento de tamanho e agora é só uma pequena cruz, afogada de cimento e de carros por todo o lado.
A Arte Vária encontra-se na zona mais recuada de um estabelecimento de móveis e de peças de decoração, o que talvez demonstre a insuficiência que Coimbra evidencia de não ser capaz de garantir o comércio de arte em regime de completa autonomia. O espaço é luminoso, o acolhimento cortez, e há o hábito enraizado por anos de insistência de editar catálogos de grafismo normalizado e sempre ilustrados, por vezes generosamente.
Vários são os acontecimentos que ali tiveram lugar no ano de 1998 que persistem na minha memória. Sem uma preocupação de actualidade jornalística, que apenas poderá ser útil para a última das exposições ainda patentes na galeria, aqui venho referir como notas de visita três desses acontecimentos.
O Jugoslavo Branislav Mihajlovic e a transgressão delicada
Paisagens semi-abstratizadas onde apenas o fenómeno do horizonte serve de referência para o observador se colocar. Interiores cheios de silêncio, onde magníficas luzes laterais definem profundidades e mistérios. Paisagens diversas e captações interiores de que o artista se serve para desenvolver uma técnica cheia de experimentalismo contido, e um olhar que não se satisfaz com a primeira visão das coisas. Um trabalho que não lança mão de materiais e objectos estranhos à pintura de forma gratuita, como tantas vezes acontece no espaço controverso de algumas tentativas de modernidade fácil, e que desafia o observador à descoberta dum intertexto rico de consequências e variado em seus níveis de leitura.
Ema Berta e a produção infatigável de seres
Sem ter a preocupação semi-académica de arrumar perfeitamente a artista nos escaninhos da referênciação estilística, salta-me à memória o Grupo Cobra, a vibração matérica de Karel Appel e a fluência caligráfica de Pierre Alechinsky na descoberta de figuras animadas de fantástico. O feérico exercício da pintura de Ema Berta decorre duma coisa que eu gosto muito e a que chamo a produção de seres. Não serão flores nem frutos nem objectos nem animais, podendo contudo ser tudo isso e muito mais. Os próprios fundos sobre os quais se agita essa floresta de entidades se constituem como silhuetas suficientemente expressivas e moduladas, para poderem afirmar-se como presenças com significação autónoma de seres, e nem sequer doutra ordem dos que primeiro se referem.
A generosa aplicação da cor, para além da figuração impulsiva cheia de imaginação subconsciente, possui um toque precioso que não oblitera nem oculta nem esmaga ou faz esquecer aquilo que a pintora vai fazendo ao longo de todo o seu labor. As pinceladas ficam todas ali ao alcance do nosso olhar, uma após outra, fazendo que cada momento de cor se adicione aos outros, amplificando-se e ganhando significado.
António Viana e a reinvenção das invenções
Nas criações de A.V. não é o conceptualismo plausível ou formalista que se cruza com o universo habitual da pintura e do desenho, ou vice-versa.
Cada corte esquemático, cada perspectiva inventada, cada alçado e respectivas cotas e até o fingimento das especificações e dos gráficos se desenvolvem mais aquém ou mais além da credibilidade de peças, ou engenhos, ou arquitecturas em concurso de utilidade real.
Nem os métodos de registo escolhidos, nem o descompromisso de rigor tecnicista, nem o particularismo frontal da escolha dos materiais de suporte colidem com o direito à visão autónoma do fenómeno da reinvenção das próprias invenções.
Inúmeras são as misturas de projectos e as interferências plástico-simbólicas. Mas nem as cúpulas das catedrais, nem os cavernames dos navios, nem a espessura dos altos fornos, nem a confusão das engrenagens, nem o paraíso esquemático do bosque invertido nos roubam espaço para o encontro com os gestos próprios do desenho ou da pintura. Aqui e ali, por todo o lado, se insinuam como finalidade eventual do labor dum artista em busca de algo mais que dos prodígios da indústria, ou das soluções providenciais saídas dos luminosos estiradores ou das oficinas fumegantes.
António Viana, a ver na galeria de Arte Vária ainda em Dezembro, ali à Cruz de Celas.