Publicado Diário de Coimbra 15 de Dezembro de 1998
Tal como as pessoas também as cidades se distraem, não vendo aquilo que se passa consigo próprias. Talvez também o leitor se não tenha dado conta, mas aquela cidade absorta contemplando a sombra do seu passado, já não existe.
A fatalidade, que não era desculpa, de não haver escolas superiores de Arte em Coimbra, já não se lhe aplica. Um largo número de estudantes de pintura, arquitectura, design gráfico, cerâmica, escultura, fotografia, gravura, serigrafia, cenografia etc. passeia agora pelas ruas antigas com a pasta dos desenhos debaixo do braço. O comércio de artigos para o exercício das artes alarga-se, algumas galerias começam finalmente a deixar de ser simples estabelecimentos que vendem pintura para se caracterizarem como iniciativas com direcção artística e projecto cultural e é notório o alargamento da população amadurecida para um novo entendimento das artes visuais.
Além dos estudantes, também os mestres de tais matérias fazem parte do alicerce humano da renovação. Valdemar Santos, professor da ARCA e licenciado na ESBAP do Porto, mas natural de Coimbra, é um exemplo significativo que hoje aqui é contemplado.
Valdemar Santos e as ressonâncias do azul
Nas transparências de azul de Valdemar Santos há muito do espírito contido e da contemplação intensa da arte oriental. Em algumas das séries expostas na Galeria OM até 19 de Dezembro, é patente o formalismo austero, a fluidez matinal e a subtileza de luzes descobertas em linhas de descontinuidade, tão abundantes no segredo e na reflexão plástica do oriente eterno.
O artista, tendo exposto em Macau, lá levou alguns trabalhos em que demonstrava essa acentuada vertente do seu imaginário e da sua cultura, não fosse mestre, construtor e investigador de cerâmicas.
Nesta mostra, contudo, não fica por aqui. E passa a colocar-nos questões principais das suas atitudes de pintor. A pintura como temática da pintura, na sua gramática e nas suas técnicas de interpelação do real, do simbólico e do exclusivamente plástico.
O plano de representação e o plano do representado confrontam-se e diferenciam-se naquele quadro com nuvens e com um estreito e comprimido horizonte onde se vêm casas e plantas em primeiríssimo plano como se fossem uma grinalda feita de papel de lustro.
O agente diferenciador de planos é o de um conjunto de círculos brancos que navegam bem perto do observador, delatando a presença da tela, e dizendo-nos:
– Olhem todos e percam as ilusões; esta paisagem não passa duma coisa pintada numa tela tão branca e tão vazia como qualquer de nós!
Pintura tonta, nunca mais!
O compromisso natural das coisas arquitectónicas bem arrumadas sobre a paisagem, e da paisagem bem arrumada em baixo, no plano que vai dos nossos pés até à linha do horizonte, são questionados naquele quadro em que o horizonte é uma nuvem espessa com barco e lua, e a casa de paredes brancas aparece invertida sobre a parte mais escura e mais distante do céu carregado.
E o acto gratuito da pintura mimética, copiada, repetida (a citação de citações de citações, lembram-se?…) é rebatido naquele quadro quase igual ao seu duplo, com legendas em inglês e tudo.
Mais duas séries de pequenos formatos marcam presença, cada um no seu género próprio, neste conjunto.
Uma das séries é uma espécie de viagem em instantâneos temporizados em torno dum ramo de rosas que assumem sem embaraços o seu singelo destino decorativo. Rosas, sempre moduladas em preciosismo de azul e branco, realçadas por uma passagem de verniz (que evoca com eficácia o vidrado de azulejos) navegam sobre fundo neutro, baço e opaco.
A outra é uma alusão a situações da pintura clássica com um entrecho e um enredo próprios que não vale a pena contar aqui por ser longa a história e concentradas as ideias. Mas muito expressivos os exemplos e a técnica que propõem, por trazerem à memória a atitude privilegiada em arte que é a do momento da investigação, do estudo e do lançamento do projecto. Quem me dera vê-los em grande formato, em quadros tão comunicativos como a ideia que nos propõem
A Galeria OM, situada perto do Girassolum, é um pequeno espaço de arte onde as exposições se sucedem e onde é possível folhear um jornal de artes ou até comprar uma edição especializada na matéria. Ali se encontra, até 19 de Dezembro, a exposição de Valdemar Santos, que dispõe de um pequeno catálogo concebido com originalidade e ilustrado com fotografias coloridas reproduzindo quadros expostos.