Publicado Diário de Coimbra 20 de Agosto de 1999
Coimbra em Agosto, a cidade no seu melhor.
É assim, com menos gente e com menos (muito menos) automóveis, que se prova o que é obvio: a má arrumação do cimento armado, a exagerada taxa de ocupação do solo urbano.
A paz merecida de Agosto podia ser de todo o ano se fosse outra a arrumação das coisas. E não me venham com razões do negócio porque o negócio também podia fazer-se deixando às pessoas espaço livre para viver.
E nós, os poucos que cá ficamos este mês, também devemos pensar nisto: A cidade é construída para todos, mas só alguns mandam na construção da cidade toda.
Coleccionar Arte, refrescar Agosto
Agosto em Coimbra, gente ausente, portas fechadas. Os autocarros rareiam, mas só dá conta disso o turista mais pobre e o número de cidadãos residentes que não possui o sacrossanto objecto de transporte privado: polui e transtorna o quotidiano, mas quem há aí que queira virar a cara a esse naco de liberdade possível. O carro: sustentáculo afirmativo do ego e ensejo dominador do tempo e do espaço!
Entretanto, não se esqueça duma coisa, estimado leitor: Se prescindir de trocar carro tão cedo pode ir pensando em começar já uma bela colecção de obras de arte. Exactamente com o mesmo dinheiro, sem qualquer encargo para si (até parece um daqueles anúncios de papo furado a quem tanta gente dá ouvidos…).
E o valor dos quadros adquiridos vai ficar ali intacto para todo o sempre, enquanto que o valor da lata rebrilhante em breve perderá a refulgência que tanto impressiona amigos e conhecidos. Eu sei que não vai fazer isso mas não me leve a mal. É para desabafos ingénuos como este que se fizeram as crónicas de Verão!
Metamo-nos então no comboio (que, aparte o chegar sempre fora de horas, é uma ilha de frescura através da manhã afogueada) rumo a Lisboa, em busca de sensações e relações que nunca virão até nós, os da província.
Em Lisboa, na Gulbenkian, as exposições de Paula Rego (até 29) e a de Paul Caulfield (até 15). Na Culturgest foi ainda possível ver a realização dedicada a artistas da América Latina que estava de saída. Logo ao lado, no palácio Galveias, a exposição da pintura Espanhola e Cubana das colecções do Museu Nacional de Cuba (até 10 de Outubro).
Esta última exposição é uma excelente oportunidade para os apreciadores de pintura do Sec. XIX. O catálogo é uma edição excelente com um preço muito convidativo, atendendo à sua qualidade.
Quanto a Paula Rego e a Paul Caulfield, são artistas impossíveis de arrumar nesta crónica de Agosto, quedando-me desta feita pela sugestão de que, sim senhor, são visitas do maior interesse.
Sanfins, uma capital castreja
Ficando em Lisboa (uma vez não são vezes…) foi possível ir no outro dia, logo de manhã, para Belém. Como o Centro Cultural só abre lá para as onze, chegou o tempo para matar saudades das muitas coisas que estão à volta da Praça do Império e, não havendo coragem para andar muito, aproveitou-se para visitar desta vez o Museu Nacional da Arqueologia.
Embora não estando patente ao público a importante colecção permanente, o que é pena, visitam-se as quatro exposições disponíveis, qual delas a mais interessante. Uma documenta os núcleos de povoamento que existiram no norte do país numa época anterior à fundação da nacionalidade, com filmes, vitrinas, maquettes, mapas e diversos painéis muito elucidativos.
O número de locais históricos referenciados naquele período (povoados por valorosos combatentes que se opuseram à campanha militar romana de Décio Júnio Bruto de 138 a 136 AC) é verdadeiramente surpreendente – cerca de 500 localidades!
Nos caso mais amplamente documentado pela exposição (Sanfins, a 7 Km de Paços de Ferreira e a 30 Km do Porto) é fortíssima a motivação duma visita a fazer “in loco”, devido à beleza do local de implantação dos vestígios e a respectiva recuperação arqueológica.
A outra exposição temporária, instalada sobre estruturas em ferro com uma concepção e uma arquitectura em tudo surpreendentes, é uma notável realização a respeito da herança histórica e cultural do Islão no nosso país, numa mostra sugestivamente intitulada “Os Últimos sinais do Mediterrâneo”.
Com caracter permanente ali se podem visitar duas exposições soberbas: A Arte Egípcia e Tesouros da Arqueologia Portuguesa, integrando esta última conjuntos de valor incalculável de peças de ourivesaria arcaica peninsular.
Mário Botas e as visões inquietantes
No Centro Cultural de Belém há sempre coisas de interesse para ver. Sem me referir com o detalhe devido à colecção ali presente do Museu do Design, e também à exposição “Flashes, tendências contemporâneas” da Fondation Cartier pour l’Art Contemporain, falo do principal motivo que me fez deslocar ali: a retrospectiva de Mário Botas presente ainda até 24 de Outubro próximo.
Na minha coleccão de papéis velhos e recortes preciosos figura um par de antigas policópias de 1981, respeitantes a uma interessante exposição feita por Mário Botas em Coimbra, no Círculo de Artes Plásticas (“Quinze desenhos de viagem e três de meter medo”) sendo sua directora a minha saudosa amiga, a artista Túlia Saldanha. Com ambos conversei na altura e é indelével a impressão que me ficou da personalidade fina e talentosa do artista.
Sempre tenho perseguido com zelo e prazer do espírito os testemunhos da obra de Mário Botas. A sombra gélida do seu fim pre-anunciado mancha geralmente de espanto a consideração que merecem os seus trabalhos.
Para mim, contudo, entre tanto destino inútil e entre tanto desperdício de vida fútil como o que nos é dado ver por este mundo, encontro na duração de Mário Botas um larguíssimo continente de horizontes infindáveis.
Lamentando a brevidade dolorosa da sua passagem e contemplando sem temor a contingência inevitável do nosso próprio fim, não sinto qualquer desgosto fundamental ao pensar no destino do grande artista.
Pensando na extensão do tempo, na raridade fluída de qualquer tempo, é sempre curto e insubstancial o tempo que já passou, e não voltará jamais. Só a obra, o pensamento e o sentido que nela residem podem permanecer como garantias de eternidade e substância. Nessa ordem de ideias, tempo longo e profundo de imensa riqueza foi o que não faltou ao trabalho deste enorme criador.
Entra-se no espaço que o Centro Cultural de Belém lhe reservou e abrem-se-nos as asas dum imenso desejo de participar e de viver.
A opção pelos suportes de pequenas dimensões e a utilização de técnicas de registo muito singelas não impedem que a obra surja pujante, densificada, magnificamente transcendente.
Dando uma ou mais voltas a todo o conjunto exposto é sempre enorme o manancial da surpresa e da descoberta: a estranheza, o inesperado, a aragem do medo e a incessante convocatória de referentes duma cultura requintada de mil olhos e de mil cabeças associam-se a um sentimento poderoso de lucidez e destemor.
Isto mesmo, dito doutra maneira: o exercício pleno duma virilidade do olhar. A capacidade para encarar de frente os mistérios magníficos. A incapacidade de recusar as versões desconcertantes da verdade.
Razões para entender que a vida não é para mirar de soslaio, e que a arte vista por este prisma nunca pode ser aquele exercício insípido de certas paixões superficiais, cheias do pequeno amor, inquinadas de mesquinho amor.