Publicado Diário de Coimbra 27 de Novembro de 1999
José Daniel Abrunheiro 1997 (visto na internet)
O artista confessa-se exilado por iniciativa própria na sua terra de origem. Fugido às contingências, às várias alienações e à pouca generosidade. Não é pessoa que apareça por aqui e por ali, empunhando a taça da estratégia colunável.
Abrunheiro procurou distanciar-se, ganhar altitude, legitimar a autonomia do seu discurso. Emigrou para dentro de si. Procurou-se e regressa muitos anos depois, com um braçado de paragens percorridas no extenso território da sua necessidade e do seu desejo. Não há exercício mais árduo e parede mais a pique: atravessar léguas e léguas de território ausente, navegar milhas e milhas de mar enxuto, em busca de algo que está dentro.
A pintura que nos oferece é duma opulência desusada, profundamente marcada por uma experiência desenhística que pertence ao percurso do artista gráfico que de modo consistente transferiu do estirador para a paleta uma maestria oficinal impressionante. Todos os seus contornos são tão esmeradamente definidos, com gradientes luminosos tão exactamente categorizados, que não deixam espaço a qualquer encantamento dúbio, desfocagem inoportuna ou intrusão astigmática. O todo especialmente caracterizado pelo uso tão comedido da matéria pictórica, que não chegamos a dar pela presença material do óleo, quando é essa a técnica utilizada.
O drama interior, se questionado, é enormemente confrontado com essa claridade inequívoca, à qual se acrescenta um enorme optimismo colorista que se exprime até às culminâncias dum sensualismo onírico, recuperação impressiva de paragens cheias de espanto, recordações de sonhos de criança que dorme, ou de alma regressada agora mesmo dum além inexplicável e resplandecente.
Nem o olhar da águia nos atormenta nem as garras do leão nos assustam, metaforicamente ocultas por um par de luvas da mais requintada pelica.
O ventre claro e luminoso da mulher é como uma praia e nele as pegadas caminham para a luz. A luz omnipresente: no vestuário das pessoas já mortas, na translúcida evocação da Mãe, na transparência poligonal das cores, nos planos entrepostos, nas imagens de leituras múltiplas, na simbólica persistente.
Só o rosto do próprio, se auto-retratado, nos confronta com a gravidade solene do silêncio, com a visão distante dos problemas sem resposta ou o olhar descido daquele que procura no interior aquilo que não encontra fora, estendendo uma mão problematicamente vazia que tanto oferece como solicita.
A sublimação mais adequada que me parece ter encontrado do gesto pictórico de Abrunheiro situa-se na natureza mesma dos suportes por ele mais frequentemente utilizados. Telas de rede fina ou aglomerados de madeira de superfície firme e lisa, superfícies duma brancura estreme em cuja alvura incólume o olhar do pintor se pode perder no primeiro instante como num oceano de luz, sem margens nem fronteiras, sem fim nem princípio.
É nesse território imponderável que se expande a pronunciada vocação lírica do artista ou o seu cansaço dos paradoxos do quotidiano, onde nos dá a ver coisas e objectos transfigurados, muito para além dos limites plausíveis da realidade. Uma cidade, como monturo de lixo fétido, é retratada com as cores da cidade dos brinquedos de Pinóquio e as atractivas ressonâncias de papel de lustro da casa dos confeitos de “Hänsel und Grettel”.
Pintura excessiva no seu tormento de explicitação?
A focagem omnipresente, tão abundantemente suspensa de uma confessada vocação literária, mantem o olhar do pintor associado a um compromisso estrito da visão com o objecto que se dá a ver, compromisso a que muitas pinturas se vêm mostrando alheias.
Que importa isso a um artista que acerta todos os seus relógios pela hora incerta, em quadrantes de geração esquisita dum sujeito ausente que persiste na busca do tempo que não é, e que um dia destes pode surpreender-nos ao virar da esquina dum sonho ou procurando pelo chão a jóia perdida dum sentimento?