Crónicas da morte anunciada da pintura (ou não) – I

 

 

Publicado Diário de Coimbra 13 de Outubro de 2000

De regresso a estas intervenções, depois de um interregno dedicado a outras tarefas, saudações cordiais aos leitores do DC, sobretudo àqueles que me foram perguntando pelas “conversas de pintor”.

Regresso adequadamente céptico, como demonstra o título, redigido por um pintor que tem coleccionado textos, referências, depoimentos e bibliografia avulsa sobre o tema da morte da arte em geral e a respeito do ocaso da pintura, em particular.

Adivinho a curiosidade surpreendida do leitor:

–        É então verdade que a pintura (e a arte…) já morreram, ou não?

A pergunta feita assim, não desafia a resposta. A perpetuidade das coisas é coisa que a natureza não consente, mas ao homem, ser irrequieto e – para mais – agressivo e destruidor, é preocupação obsessiva a projecção perene da sua individualidade.

Apesar dos consagrados avisos de que “assim passa a glória do mundo”  é indesmentível que um número selecto e insubstituível de coisas é eterno no plinto imaginário sobre o qual se ergue.

As artes são, algures, parecidas com as religiões. Há sempre profetas que vaticinam a sua chegada esclarecida ou o seu ocaso inevitável. E há sempre um número incerto, mas garantido, de fiéis prontos a retomar a palavra, a imagem e o sentido da sua necessidade insuplantável.

Se a comparação com as religiões é bem ou mal feita, não perca o leitor tempo a combater ou alinhar tal conceito. Certo é que as artes se transfiguram incessantemente, sem ser garantida a sua entrada numa contingente e precária eternidade.

Necessário seria contudo que todos e cada um de nós pudesse ser capaz de lançar mão daquela visão das coisas que mais agradavelmente lhe convém, sem a interferência obscura das manipulações do oportunismo, das encenações esquisitas e da pressa, da perturbação da velocidade que atravessam este século e estes dias.

Questões do tempo e do corpo

Discutir a morte da arte é como discutir a morte do tempo. Existirá, o tempo? Quando acordamos pela manhã, será realmente do tempo, aquilo de que nos falam os ponteiros do relógio?

“Para si, disponha de todo o tempo do mundo!…”, grita incessantemente o coro infatigável das publicidades. E eu pergunto:

–        Tempo, para quê?

Para reflectir serenamente, para contemplar o brilho dum olhar, ou o itinerário dum raio de luz que se escapa!

O cinema de Manoel de Oliveira tem essa mensagem  insigne, que é a de retomar nas imagens a lógica do tempo da palavra lida, ou a lógica do olhar que se detém sobre um objecto para que a memória o possua captando, por seu intermédio, a compacta variedade do mundo.

Além do tempo, tem a pintura a ver com o corpo. Com as dimensões e a conformação do rosto. Com a paisagem do olhar.

De manhã, quando se levanta, fique com vagar algum tempo a olhar o espelho. Tente descobrir as paisagens que se escondem por detrás do seu olhar.

Prolongue, sem pensar no relógio, as virtudes desse instante suspenso.

Talvez consiga, por si mesmo, descobrir verdades inéditas e palpitantes sobre o destino da arte e das suas imensas mortes anunciadas.

Bibliografia:

“The End of the Art World”, Robert C. Morgan, Allworth Press, NY, Aesthetics Today series

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