Colette Vilatte ou a pintura como exercício excelente

 

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Publicado Diário de Coimbra 2 de Novembro e 25 de Setembro de 2000

Ao volante do meu já antigo companheiro de viagens aproximo-me do Bom Velho, lugar onde se situa o atelier de Colette. Sobretudo depois de se passar Alcabideque a paisagem adquire uma nobreza rara, um intimismo clássico comprovativo de origens culturais mediterrânicas.
As formas esguias dos ciprestes e os maciços de pinheiros mansos que se espalham por sobre as colinas produzem um efeito de cenário a que não faltam pórticos, ninfas, faunos e poetas (estes acrescentados pela imaginação, já se vê…).
Por entre a erva seca (filha do desleixo da desertificação e da mãe amorosa dos incêndios) resistem bravamente oliveiras e azinheiras tristemente abandonadas, o todo envolvido pelo mistério de séculos, em terra de ruínas romanas e lembranças de muitas eras.
Já no atelier não é o peso das memórias nem o vazio irreparável das ausências que me retêm. A pintura de Colette Vilatte está ali e é um desafio inevitável para o olhar e para o alinhamento das ideias.
Comece por dizer-se que C.V.  não é daquelas pessoas que tenha entrado na arte por predestinação juvenil, ou opção natural de estudos. A sua vida é feita de imaginários confluentes de origens diversas, onde a necessidade de expressão artística resulta duma carência lentamente amadurecida. Não surpreende portanto que produza uma pintura marcada por um forte sentido de rigor e moderação de gestos, aquilo que tanto admiro e a que chamo “economia de meios”.
Abstraccionismos há muitos, poderia dizer-se. E até há casos em que o fervor “espontaneísta” tropeça no degrau resvaladiço das soluções expeditivas, portas que se abrem para salas vazias, de ar tão rarefeito que nelas mal se respira.
A pintura de Colette liberta, até à austeridade, de alusões confrontáveis com a experiência dos nossos sentidos, não deixa de evidenciar um labor orientado para a descoberta de uma “figuração”, determinada pelo sentimento e pela sensibilidade, de “seres” que povoam a alma do mundo. Cartografia de continentes e oceanos de formação cosmicamente distante ou vestígios recuperados da sinalética de painéis e painéis publicitários, aos quais o esplendor gráfico de um instante não livra da inevitável erosão do tempo e do mergulho insondável na fragmentação da mensagem plástica, completamente liberta de todos os recados supérfluos e invasores.
A pintora reúne as impressões e impulsos oriundos dessas coordenadas tão distantes, em alinhamentos ora sinuosos ora ritmados por inflexões acentuadas, a totalidade da obra aglutinada pela cortina de manchas subtis e fragmentárias, franja nebulosa que os acasos e virtudes do material diluído adequadamente propiciam.
Todo este universo surge marcado pela elaboração suave e cuidadosa e se o gesto aqui e ali surge despreendido e casual, é porque obedece aos preceitos dessa cartografia de continentes distantes ou interiores, aos quais um critério de arrumação plástica subdivide em suportes diferenciados, sem que essa expediente releve duma qualquer intenção delimitativa, estruturante ou fracturante do campo.
Se um traço atravessa a tela de extremo a extremo, aquilo que poderia ser de início um simples risco na pele lisa e rápida do suporte inerte, transmuta-se numa vibração, numa fractura delimitativa de compartimentos enriquecidos por tonalidades, escorrências e casualidades inerentes ao exercício de tudo o que há de mais simples, no exercício excelente desta arte magnífica a que se chama pintura.

Colette Vilatte expõe na Casa Municipal da Cultura

E não deixa de ser curioso e interessante que, tendo-me ocupado ultimamente com um tema recorrente da teorização das artes e da estética, que é “a morte da arte”, a “desmaterialização da arte” ou o “fim da pintura”, tenha mais uma vez e sempre tido a oportunidade gratificante de me encontrar com Colette Vilatte, obreira diligente da perpetuidade da arte da pintura, a tal coisa que só morre se dentro de nós deixarmos secar a fonte fresca e esclarecida do nosso olhar pensativo.
Aí está, estimado leitor, um tema bem nutrido para uma série de “conversas” a desenvolver  aqui, no futuro próximo.
Entretanto, e desde o dia 3 de Outubro, visite a exposição de C.V. patente na Casa Municipal da Cultura.

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