A pintura de Quintas, a luz e a essência

Publicado Diário de Coimbra 14 de Abril de 2001

A causa próxima deste escrito impôs-se-me de forma especialmente emocionada ao ter entrado numa das salas de exposições que a Universidade de Aveiro vai dinamizando de forma contínua e estimulante.
O artista exposto, Quintas de seu nome, não era do meu conhecimento muito íntimo. Quadro aqui, quadro ali, em bienais ou colectivas de variado tipo, já me apercebera da sua identidade forte. Nada vira antes, contudo, como aquele conjunto especialmente coerente e impressionante, testemunho eficaz duma preocupação de amadurecimento do artista em busca do que é essencial.
Tal critério de exigência não é, com certeza, alheio ao facto de ser uma realização efectuada nas instalações de uma Universidade que pensa a sério na componente cultural das suas intervenções.

A Universidade como espaço de liberdade

O leitor dirá, com toda a razão, que é para isso que servem as universidades. E eu confirmo, sem mais comentários, pensando no turbilhão confuso das alienações, e na preciosidade que é poder, um artista sério em todo o sentido da palavra, dispor dum lugar assim, onde possa explicitar toda a energia disponível na sua mente, sem se distrair com facilidades ou concessões que a sociedade e as conveniências práticas tão frequentemente impõem.
As pessoas que tenham entrado nessa exposição devem ter podido aquietar dentro de si, por instantes, o inevitável bulício duma aceleração vital pouco tolerante com as densidades do espírito criador, na presença de um artista preocupado, mais do que em produzir um certo número de trabalhos de pintura, em fazer-nos participar dessa força interior que conduz à realização de uma verdadeira “obra”.
O conjunto de pinturas apresentado (“o grito do silêncio”) possui uma referenciação histórica e cultural muito precisa (o campo de concentração de Auschwitz) que o artista me foi desvelando, entre sensibilizado e comovido.
A minha atenção ao objecto estético ali presente, contudo, insistia em levar-me para outras paragens do sentido de apreensão da obra.
Desde as portas envidraçadas que, por detrás da livraria, conduzem à galeria anexa ao auditório, o distanciamento começava por fornecer a visão sintética de cada trabalho de Quintas, onde cada sinal está presente quer por efeito da explicitação pictórica que o pintor confere ao gesto, quer por efeito de magia associativa do cérebro, no seu labor de percepções complexas que vão daquilo que se vê àquilo que pode entender-se por virtude do saber que a memória vai acumulando.

A pintura de qualidade vista ao longe, também o é se vista ao perto

O artista, ele próprio licenciado pela Universidade de Aveiro, escola distinta que admira e respeita, confessa-se uma pessoa interessada pelo estudo da filosofia e da estética. Se conhece ou não em profundidade os estudos sobre a psicologia da percepção e a psicologia da forma, se leu Gombrich ou Arnheim ou Panofsky, pouco importa, contudo.
O que se dá a ver naquelas magníficas telas de generosas dimensões é um tratado de apreensão dinâmica da visão sensível, isolando cada mancha ou conjunto de manchas naquilo que possuem de rigorosamente essencial, ou seja, eliminando todo o detalhe pitoresco, toda a sobrecarga informativa.
Superfícies subtilmente moduladas revelam vestígios de execuções prévias, quer no interior dessas mesmas superfícies quer nas suas fronteiras delimitativas. A descoberta de tais ocorrências é uma tarefa de prazer visual que nos faz descobrir inúmeros preciosismos de execução artística onde cada silhueta ou tonalidade cromática inscritas no tecido da obra não aparecem nela por acaso, por mais diminutas ou aparentemente casuais.
O processo assim delineado revela uma outra dimensão da criatividade de Quintas: para além do tratamento do tema do silêncio imposto a todos os injustiçados, é a pintura que se afirma em toda a sua extensão, agregando linguagens afins da arte fotográfica, tal como os processos da solarização e do alto contraste.
Tendo de ficar por aqui na dimensão conveniente duma crónica breve, muitas coisas ficam por dizer a respeito do artista e do seu labor.
Limito-me a referir o facto de ter feito uma rápida visita a alguns departamentos da U.A. onde se encontram aquisições valiosas e dignificantes de artistas aveirenses, nomeadamente de Quintas, facto que diz muito a respeito desta Escola de prestígio crescente, onde devem sentir-se muito bem os seus alunos envolvidos pela luz intensa do mar e pela amplidão do formoso pedaço de litoral onde se implanta.

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