Publicado Diário de Coimbra 14 de Junho de 2001
Encontrei João Dixo quando estava envolvido na montagem da sua exposição.
Por aqui e por ali, sem os primores de arrumação que as obras expostas irão depois adquirir, as pinturas eram já perfeitamente contempláveis.
A atitude de objectos ainda não colocados na sua posição “correcta”, acentuava-lhes o valor de paisagens ou visões legíveis numa pluralidade de ângulos, numa diversa e complementar variedade de abordagens.
Começando pelas cores, surpreendem-me pela intensidade de contrastes e limpidez de tons, que se insinuam como memórias da infância. Geralmente desalinhadas do mais óbvio das cores primárias, conduzem a visão para uma área de fascínio quase hipnótico, perto da vertigem ou da percepção de coisas de que nos lembramos sem jamais tê-las visto.
Passando depois às imagens é igualmente num território de indeterminação que nos encontramos. Cada figura mais elaborada, cada alusão casual, cada composição paisagística, tudo peças encaixáveis conforme a malha de referências culturais ou a energia imaginativa do observador.
O pitoresco, o secreto e o irónico dão-se as mãos, organizando exercícios do olhar que se aventuram por vezes para fora das dimensões do campo ou conquistando a parcela diminuta, mas vibrante, duma margem lateral da tela. Sem esquecer as acentuações que se materializam sob a forma de apêndices, brinquedos e objectos simbólicos, ou a invulgar titulação das obras.
A pintura, exercício de transcendência
“Eu só posso ir a um museu ver imensas coisas num quadro se lá for inventá-las com o meu olhar, vendo esse quadro em silêncio e respeito, com afastamento, numa atitude que tem algo de sacro, não tocando”, diz-me o artista.
É a esse “exercício de transcendência” que nos convidará a arte mais uma vez e sempre. “Eu é que faço o milagre e não o milagre que me faz a mim”, acrescenta.
Presente em Coimbra desde 1966 e aqui continuadamente activo no exercício da pedagogia artística, foi professor da Faculdade de Belas Artes do Porto, responsável pela grupo de desenho do Departamento de Arquitectura da FCTUC desde a sua criação, é Director da ARCA/ETAC e responsável pela Licenciatura de Pintura ministrada nessa mesma instituição.
Conduziu, além de tudo isso, uma actividade multidireccional no campo das artes plásticas e da pintura cujo detalhe não cabe nas limitações desta breve crónica.
Alongo a troca de impressões com João Dixo em torno dos conceitos que tem desenvolvido sobre a pintura nos dias de hoje, abrangendo numa visão relâmpago a sua enorme transformação desde os tempos remotos em que possuía funções de vário tipo, como veículo e suporte de imaginários dificilmente encontráveis noutra forma de comunicação expressiva.
“A pintura de hoje não é herdeira da pintura do Renascimento. Os seus herdeiros são os inumeráveis meios de comunicação, dos jornais à internet e à televisão”, esclarece.
A pintura sobrou como processo técnico, como teria sobrado uma charrette antiga com a qual já ninguém se transporta daqui para ali, mas na qual ainda podemos fazer uma viagem integralmente dedicada ao prazer, à contemplação, à descoberta de nós mesmos e do mundo.
“Vamos a um museu ou a uma galeria de arte não para assistirmos a uma função, mas para irmos espreitar a nossa capacidade criadora ou para buscar as referências que soubermos encontrar relativas à história da pintura.”
Milionários, precisam-se
João Dixo não mastiga as palavras referindo-se a questões materiais de certo tipo. “Os artistas são feitos pelo mercado” afirma.
E há uma constatação a que não foge: sendo os pintores pessoas que não sabem fazer senão coisas supérfluas, criadas apenas com fim em si mesmas, para usufruto especializado e prazer de quem as contempla, são evidentemente necessários os milionários que lhes possibilitem subsistir e materializar obras que deverão ser “quanto mais caras, melhor”.
A mesa acesa da pintura
De tampos rígidos de brilho espesso, ali estão esses objectos de simbologia entendível, esses que Manuel António Pina define com a lucidez eloquente do poema inserido no catálogo: “Crueldade de frutos e de flores, /ócios de azul, odores, sabores, / tudo o que sem finalidade dura / serves à mesa acesa da pintura. / Puseste-nos a mesa para uma comida /que a si mesma se come /com uma pueril e insaciável fome /de exterioridade e vida…”;
Convivas somos, pois, no lugar simbólico do mais feliz e descomprometido encontro que é possível conceber: o que associa a essencialidade e o supérfluo, a necessidade e o prazer, o público e o privado
Convivas somos, pois, dum repasto cujas iguarias nos são fornecidas pelo seu autor, mas cuja elaboração nos é confiada podendo, para além disso, temperar a gosto a variedade das múltiplas soluções interpretativas. As mesmas que qualquer obra de arte deve permitir como espaço de ambiguidade onde cabem todos os acidentes e excepções, e que são marcas indeléveis da sua liberdade criativa e da sua genuína autenticidade.
As “Mesas da Cultura” de João Dixo, até 27 de Maio, na Casa Municipal da Cultura.