Alexandre Ramires revela-nos Coimbra, no Museu Machado de Castro

 

Publicado Diário de Coimbra 27 de Junho de 2001

Alexandre Ramires vai deixar-nos para passar a ocupar o cargo de Coordenador do Arquivo Fotográfico do Porto, no Centro Português de Fotografia.
Congratulo-me com o facto, que faz justiça à pessoa e às suas qualidades culturais e artísticas, e deixa a auto-contemplativa cidade impassível como ela sempre está, convicta de ocupar um lugar certo e garantido, bem no centro do Mundo.
A obra que Alexandre Ramires tem produzido no domínio das artes visuais em geral, no âmbito da documentação e criação foto e videográfica, é já muito abundantemente conhecida e a presente exposição “Revelar Coimbra 1842-1900” não é mais do que uma confirmação daquilo que é capaz de nos oferecer.
Utilizando documentos dum ineditismo total e todos com mais de 100 anos, Ramires coloca Coimbra no rol das cidades capazes de erigir a sua memória fotográfica como elemento de valorização patrimonial e historiográfica de importância relevante.

As distracções da cultura inconsequente

De referir que grande número dos documentos mostrados foram salvos por Alexandre Ramires duma morte iminente, recuperando-os de montes de papéis quase abandonados ou redescobrindo-os em alfarrabistas, arquivos e bibliotecas em Portugal e no estrangeiro.
São muito diversos os capítulos em que poderia desdobrar-se o manancial de temas de investigação que nos dá a conhecer, magnificamente apoiados, como é hábito, por uma peça de criação videográfica de sua autoria, que irá ser permanentemente visualizável durante o decurso da exposição.
Cada um desses capítulos daria margem, como nos afirma A.R., para outras tantas realizações expositivas ou editoriais, na preservação de algo que todos os dias se perde um pouco, um muito, ou completamente, ao sabor da desatenção, da pressa e da inconsequência cultural.
Sabia, caro leitor, que Santa Clara, vista na prata dum daguerreotipo de 1842, poderá ser a fotografia mais antiga existente em Portugal?
Já ouviu falar no “Mudo calceteiro”, na “Patrocínia cega” ou no “Cobra ladrão”?
E que sabemos de António da Conceição Matos, pintor e miniaturista por designação própria, inventor e primeiro fotógrafo profissional aqui residente?
E de  José Maria dos Santos, dentista e fotógrafo durante quarenta anos, ou de Arsène Hayes, refugiado e livre pensador, com atelier no nº 153 da Rua da Sofia?
Desses e de muitos outros nomes nos fala a exposição, no desfilar dum universo rico de áreas inexploradas, em que poucas pessoas têm querido aventurar a sua curiosidade, o seu labor e o seu olhar sensível.
Cabe referir o nome de Eduardo Mamede como investigador e publicista, a quem se deve um bem documentado trabalho neste domínio de interesses e que, legitimamente, não é esquecido por A.R. no longo texto do catálogo da exposição.
A atitude, que refiro apenas de passagem e sem o detalhe merecido, é a marca duma espécie de lealdade cultural muito louvável nem sempre levada à prática neste género de obras por grande número de autores.

Capital cultural por um ano ou para sempre?

Sem ter tempo para sopesar condignamente o valor sociológico e estético deste  acontecimento e comentar todas as facetas da sua realização, resta-me confiar aos leitores a surpresa que me produziu uma quantidade de rostos, de indumentárias e de personalidades pela primeira vez revelados, tão distantes da versão castiça dum tradicionalismo sem convicção, nem viço, nem verdade.
Aquelas figuras saem pelas janelas abertas no passado como criaturas vivas, testemunhas disponíveis dum tempo que não é nosso, mas que podemos visitar sem ser em sonhos.
Será aquela sociedade de facto nossa, estaremos nós ali, na sombra e no gesto de avós e tios e parentes longínquos, cujo ascendente não temos o direito de evocar por terem sido vítimas do nosso próprio olvido?
Alexandre Ramires consegue dar duas voltas de manivela na inacreditável máquina do tempo e fazê-la funcionar, de facto!
Não fosse ele um apaixonado pelo cinema que às imagens repentinas e fugidias da fábrica dos sonhos prefere a contemplação serena das figuras imóveis, tão fáceis de acalentar e abraçar, no cheiro e no calor duma ternura antiga mas real e completamente viva, aqui, neste exacto momento.
“Revelar Coimbra, 1842-1900”,  no Museu Machado de Castro, até ao dia 16 de Setembro, alguns meses antes da mais antiga cidade onde em Portugal se ensinou a ler, se ver transformada em sua capital cultural.
Por um ano só, ou para sempre?

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