Cultura a mais, crítica a menos

 

Publicado Diário de Coimbra 2 de Julho de 2001

Dizia um amigo meu há dias, na abertura duma belíssima exposição, que não valia a pena usar de certo tom irónico nas crónicas que vou escrevendo.
E respondia-lhe eu exactamente o contrário, por pensar que o que nos falta é um escrutínio mais atento e sistemático de tudo aquilo que se passa na cidade, para ilustração geral dos cidadãos e para que as instituições deixem de pensar que estão a trabalhar para uma glória incontestável, como entidades destacadas da massa de pessoas de que fazem parte, olhando-se ao espelho duma tranquila autosuficiência.
Por outro lado, sendo Coimbra uma cidade fervilhante de acontecimentos de todo o tipo (é impossível assistir a tudo, e é incontável o número de coisas fundamentais que se vão perdendo) é notória a escassez de referênciação crítica e registo documental adequado de tantas peças de teatro, de tantos lançamentos de livros, de tantas conferências, de tantas exposições, etc.
O futuro desta terra terá conhecimento abundante de certas figuras de opereta que conseguem furar o tecto alto e a carapaça dura da notoriedade, e irá ignorar lamentavelmente momentos da mais alta distinção que ocorreram para regalo confidencial de meia dúzia de participantes.

Aproveitar melhor o que temos de bom

Um dos privilégios a que a cidade se foi habituando ao longo dos anos, e com o qual convive no encantamento acomodado dos afectos garantidos, é a presença laboriosa do Teatro Académico de Gil Vicente, apresentado e conhecido pela sua sigla TAGV (não confundir com TGV…).
A história da casa é muito complexa e variada e não sou eu que vou fazê-la aqui. Estando em Coimbra há trinta anos já me lembro, contudo, dum número incontável de episódios com ela relacionados.
Hoje venho só falar-vos dum espectáculo que nela vi há dias, duma exposição de pinturas presente na altura, e na programação que se apresenta para este mês de Julho.
Com encenação de Adriano Luz, texto de Luísa Costa Gomes e interpretação de José Pedro Gomes, apresentou o TAGV a peça “O último a rir”.
Impulsionado pela notoriedade que só a Televisão permite (que seria do talento explosivo de J.P.G. se não tivesse nunca ido à TV?) garantiu o espectáculo duas casas completamente cheias. O texto, narrativa dum atribulado casamento recheado de personagens, todas elas desfilando perante nós através do talento histriónico e da comunicabilidade vibrante do único actor disponível (por isso os franceses lhe dão o nome de “théatre à une voix”) arrasta-se, em certas alturas, pela normalidade humorística que é de esperar num espectáculo deste género.
De quando em vez, porém, a vitalidade do actor não cabe na lógica descritiva que se vai organizando na nossa mente, e levanta voo,  toma conta dos acontecimentos duma forma irresistível, criando uma coisa especial que é “o espectáculo dentro do espectáculo”. É preciso ter ido ver para nos darmos conta disso, e não vale a pena perder mais tempo a explicar como foi.
No primeiro andar estão expostas várias obras de pintura de Joana Lucas e Nuno Viegas, que começam a desafiar-nos cá de baixo, da rua, reveladas pela generosidade translúcida da fachada. O simpático folheto roxo (e que bonita é a cor…) talvez pudesse trazer-nos um pouco mais de texto a respeito das obras presentes, mas sabemos bem como estas coisas são difíceis, e importante mesmo é passar pelas obras e olhar para elas.
Tomando uma bebida  no “foyer” (chamando-lhe assim, pretenciosamente, sabe-me melhor a bebida…) e olhando as luzes da praça, é bom sentir que a sala está cheia de espectadores e as pessoas se cumprimentam, falando alto. Há alguém que fuma um “puro” e isso transforma as coisas, avivando a curiosidade pelo espectáculo que vai começar dentro de instantes, tornando mais escasso o número limitado de cadeiras na sala, saturando o balcão do bar de clientes de última hora, e transformando os quadros espaçosos daqueles jovens estudantes de Belas Artes em painéis de sonho e manchas com luz própria.

Programa cheio, espaços variados

Atenção leitor, se navega pela internet, não valerá muito a pena ir visitar a página do TAGV. Está sempre ancorada em dias passados, relatando coisas já vistas.
Mas vale certamente a pena ouvir o programa da RUC que lhe é dedicado, às quintas feiras das 19 às 20, e não deve deixar de passar pela bilheteira para tirar o folheto mensal, sempre recheado de acontecimentos. Apresentando certa continuidade gráfica com o antecedente, tem agora um aspecto para mim mais comodamente decifrável. Houve um tempo que tinha as letras tão pequeninas que lê-lo era trabalho bom para míopes. E eu, que sou hipermétrope, só lá ia com uma pequena lupa que trago sempre comigo para ler as listas telefónicas e os horários dos comboios.
O programa de Julho regurgita, e não vai haver quem possa ir a tudo, já se vê. Só a programação do TAGV (às vezes também de alta velocidade…) mereceria certamente uma ou mais crónicas destas por semana.
E logo eu, que não consigo fazê-las.

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