Publicado Diário de Coimbra 23 de Julho de 2001
Nalgumas das últimas edições desta coluna tenho vindo a abordar a questão da utilização plena do trabalho de organização de iniciativas artístico-culturais, seja qual for o tipo dos acontecimentos e seja qual for a entidade que os promova.
O problema, tal como já o apresentei noutras alturas, não se situa nem na falta de quantidade nem na falta de qualidade dos mesmos, mas na precariedade ou na ausência dos meios necessários de divulgação, documentação e debate crítico, de forma a ultrapassar a confidencialidade e improdutividade a que estão condenadas mesmo as mais notáveis dessas iniciativas.
Partindo do princípio optimista de que nascem animadas dum genuíno interesse de divulgação também não faz sentido confinarem-se ao perímetro escasso da vizinhança imediata, como se vivêssemos em planetas longínquos, de costas voltadas para tesouros que estão logo ali, ao estender mão ou ao estender do nosso próprio olhar.
Uma questão de autonomia cultural
Se vou a um hipermercado posso comprar revistas sugestivas e bem ilustradas que me dão informações muito concretas daquilo que está a passar-se em Paris, a que horas e em que lugares. Lisboa é Lisboa, vem nos jornais nacionais e noutras coisas que já sabemos. O que eu não sei é o que se passa aqui, ao virar da esquina, a poucos Km de minha casa!…
Porque é que terão de ser as coisas assim? Estaremos condenados a saber mais facilmente o que ocorre em Lisboa ou em Madrid do que o que se passa num raio de 60 Km do sítio onde moramos? Não estaremos a desprezar algo de precioso e de insubstituível que é o nosso próprio sentido de autonomia cultural?
Aveiro ao virar duma auto-estrada
Por ter estado ligado a realizações artísticas de minha própria autoria, na cidade de Aveiro, e por ser destinatário da abundante informação cultural oriunda de Cantanhede, tenho-me vindo a aperceber que estamos no itinerário de importantes e interessantes iniciativas, ocorrendo elas de forma sistemática para desconhecimento duma enorme maioria. O que se aplicará evidentemente a várias outras localidades, mas vamos por partes.
Tenho em meu poder um conjunto impressionante de catálogos editados pelos Serviços Culturais da Cidade de Aveiro. É o ciclo “Arte do Século” e tem conseguido trazer àquela cidade alguns dos principais valores da arte portuguesa. Júlio Resende, João Cutileiro, José Rodrigues, Arpad Szenes, Vieira da Silva e Júlio Pomar são as referências nominais que tenho ao meu alcance.
Não fica por aqui o abertíssimo leque de realizações culturais que decorre em Aveiro, não sendo possível esquecer aquelas que a própria Universidade leva a cabo por sua iniciativa e às quais já tive ocasião de me referir noutra ocasião, se acaso está lembrado o leitor.
Aliás, no magnífico Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, a valer por si só uma visita, decorrem frequentemente acontecimentos do maior interesse, como foi o caso da exposição recente: “O Azulejo em Portugal no Sec. XX” cujo interesse revestiu, para falar bem e depressa, nível mundial.
E Cantanhede a meio caminho
No que diz respeito a Cantanhede, é também longa a série de realizações que vai tomando forma, sendo sempre recheada e variada a sua agenda cultural. De notar, contudo, a vocação que é patente de desejar inscrever a sua acção no âmbito da modernidade, da criatividade, da ecologia etc. Ainda aberta ao público no momento em que escrevo esta crónica está a exposição que é dedicada ao notável artista René Bertholo e que se apresenta na Casa Municipal da Cultura.
Os catálogos das exposições que se realizam em Cantanhede têm a característica de aliar à sua qualidade gráfica o bom nível de conteúdo estético e formativo, para não falar nos preços, uma agradável surpresa!…
Eu sei que o leitor pode ficar zangado por eu só agora lhe estar a falar de tudo isto, dado que a maioria dos acontecimentos aqui referidos já teve lugar.
Mas adiantará certamente desafiar quem tem o poder para que nos faça acreditar que a descentralização e a autonomia cultural não são apenas conceitos folclóricos destituídos de qualquer sentido, e que vale a pena de pensarmos que não somos como pequenas aldeias isoladas no vale recôndito de montanhas que não nos deixam ver os horizontes. Será ingenuidade inconsequente pensar que entidades poderosas e supra regionais como a Secretaria de Estado da Cultura ou a Comissão de Coordenação da Região Centro, ou os ministérios a quem pagamos os impostos poderiam um dia de forma concreta e prática, começar a ajudar a resolver o problema?
Eu sei que a SEC têm um veículo de divulgação de acontecimentos, leio no JL e já visitei na net. A CCRC também já colabora com a realização de acontecimentos culturais. É público e também está na net. Mas mesmo bom seria que um dia destes todas as populações vizinhas desta região do mundo pudessem vir a saber umas das outras, ter realizações conjuntas, participando de mãos dadas em festividades e acontecimentos de património comum, dando o que tivessem para dar e recebendo tudo em troca. Como se fossemos, sei lá, compatriotas dum mesmo país que fala a mesma lingua e quer entender-se na variedade de projectos culturais diversos mas complementares!…
Será isso do domínio exclusivo do sonho utópico?
Seremos nós assim, tão longinquamente ignotos, habitantes de planetas estranhos e de órbitas desencontrados?