Crítica de teatro publicada pelo Diário de Coimbra, na minha coluna “conversas de pintor”
As luzes da sala já se apagaram, dando lugar à intensidade luminosa dos focos que animam o palco de vida própria, como em flutuação de sonho.
Ouve-se uma música vibrante e os primeiros actores surgem. Vêm lá do fundo, em marcha solene, até ao proscénio. No pequeno teatro de bolso em que actuam tocariam nos espectadores da primeira fila se acaso estendessem um braço e uma mão. Mas não fazem isso. Oferecem-se sem palavras à curiosa paixão de vê-los, envolvidos por aquela música sincopada quase encantatória. O espaço que ocupam na nossa mente não está perto nem longe nem acima nem abaixo de nós. Evoluem no território que reservamos às nossas concepções abstractas, reflectindo em cor e luz a imagem que traçamos de nós mesmos, dos nossos desejos íntimos e da nossa concepção do mundo.
José de Oliveira Barata, encenador de mais esta peça, reserva para os actores mais alguns minutos de silêncio expressivo. Ele, que justifica no catálogo da peça as características do trabalho feito face aos meios com que labora a cooperativa não desatou ainda a corrente das palavras que nos levou ali e conseguiu – desde já, e de forma exuberante – pôr a rolar a locomotiva das nossas emoções e desdobrar, como num escaparate de sensações, a mais aguda curiosidade de todos os presentes. É essa a magia do Teatro? Não sei nem vou explicar. Mas vale a pena pensar nisso.
Tempo para dizer, tempo para escutar e entender
Tenho visto encenações de peças do Teatro Clássico em que o espaço da palavra é reduzido em beneficio da exuberância gestual e interpretativa dos actores. Faz-me imensa pena ficar preso a toda aquela “vis dramática” e sentir que as frases cavalgam soltas sem que possa captar o seu sentido próprio, gozando ideia a ideia sentido a sentido. É com certeza uma atitude consabida de encenadores e actores, receosos de que o discurso dramatúrgico roube alento e traga o sono às plateias. Noutras encenações é a plasticidade radical de trajes e do espaço cénico que tenta aliciar a atenção, constituindo parte essencial do espectáculo. Neste trabalho da Bonifrates não é assim. Ao desenrolar do texto foi dado um tempo próprio e um ritmo ideal para que do texto nem uma palavra se perca do princípio ao fim de toda a peça O que, aparentemente, não foi difícil a José de Oliveira Barata e a todo o excelente grupo de actores, por disporem dum precioso e imprescindível elemento de coesão no jogo cénico que é corporizado pela interpretação de Fernando Taborda. O actor está continuamente no centro de todas as atenções, repercutindo as vibrações mais íntimas do discurso dramático em acentuações de efeito diverso e sempre renovado,
À figura de Esganarelo foram reservadas contudo outras significativas responsabilidades. Ele não é apenas a personagem que faz flutuar à tona do sorriso (e até da gargalhada franca) todo o decurso da peça. Modificando e actualizando os propósitos do texto clássico de Molière está-lhe confiada a tarefa de efectuar a ponte entre o espectador atento e a figura invejável e controversa do mito de Dom Juan.
O trágico burlesco em vez da mentira do “happy end”
Transfigurando o seu rosto a partir do momento em que as contradições do seu amo atingem o limiar do insustentável, Esganarelo despede-se da comicidade quase ingénua com que nos embalara até esse ponto. Naquela brancura nova e artificial do seu rosto iremos poder projectar as interrogações a respeito já não apenas de Dom Juan e do seu mito, mas a respeito de outros libertinos, e de menos românticas libertinagens. O aplauso relaxante e o fim feliz não poderão deste modo vir connosco até que a noite se consuma num sono reparador. O alerta contra a hipocrisia massificada, planificada e cientifica, deixa a milhas de distância o engenho do sedutor de capa e espada. A consciência séria dessa opção fez com que Esganarelo, no momento em que enverga, ponta acima ponta abaixo, a casaca do seu truculento amo, transporte para um trágico burlesco a condição dos ingénuos e das ingénuas prontos a indultar não apenas os magníficos desvarios do aventureiro, mas sim todo o rol de enganos em que nos mergulham os “vícios do século”.
O protagonista cavalheiresco é interpretado por João Paulo Janicas, que confere â personagem uma presença consistente e bem torneada. No discurso final de legitimação da hipocrisia diz-nos que a mesma “é um vício que está na moda e que todos os vícios que estão na moda passam por virtudes”. O débito destas palavras é atirado, ao espectador com uma porção tão convicta de energia e raiva, que soa mais como um anátema ou uma severa advertência.
Dos actores e restantes técnicos digo muito pouco, quase nada, por falta de espaço. São vários os rostos bem conhecidos do grupo que de há anos prestam o seu contributo de forma excelente. Constituem já um conjunto desenvolto e coerente, capaz de assimilar no seu seio aqueles que com menor continuidade por ali têm passado e continuarão a passar, graças ao prestígio que a companhia tem vindo a granjear como praticante de um autêntico teatro experimental.
O pintor Carlos Madeira e a cultura estética do teatro
Não é possível fazer teatro que seja digno desse nome, sem fazer de cada nova peça um adequado estudo prévio, que domine o opulento quadro de referências culturais que lhe são próprias.
As caracterizações de estilo, a escolha dos elementos de acentuação simbólica, a recusa do óbvio e a preferência pelo que é distinto marcam presença ao longo da carreira de qualquer companhia desde os primeiros esquissos que irão configurar o espaço cénico até à descoberta do último adereço.
A linha de continuidade cenográfica que tem caracterizado ao longo destes anos a Cooperativa de Teatro Bonifrates e a contextualizacão visual de cada trabalho apresentado, com produções de baixíssimo orçamento, constrangimentos de espaço etc. tem estado a cargo do Pintor Carlos Madeira. Para além da notória competência dos diversos encenadores que tem passado pelo grupo, penso ser aquele um dos elementos chave dos êxitos artísticos alcançados e por todos reconhecidos.
No conjunto das cenografias anteriores da Cooperativa é visível a intervenção do artista numa grande variedade de opções plásticas, consoante o tipo de peça, e a abordagem – com engenho e grande comunicabilidade – das problemáticas da sociedade e do mundo actual.
Pelo cruzamento muito intenso de ideias oriundas das artes visuais e da comunicação, recordo apenas o último trabalho levado à cena (“A Família Dupond”) que infelizmente não foi possível trazer a estas crónicas. De autoria da Espanhola Alicia Guerra e sob a direcção de João Maria André, efectuava um “raid” alucinante ao universo da violência social e familiar, no contexto dos diversos meios de comunicação social, ao qual não era alheio a própria banda desenhada ali evidente através das referências à obra do artista galego Miguelanxo Prado.