Publicado Diário de Coimbra 18 de Outubro de 2001
Diz-me como olhas e eu dir-te-ei aquilo que vês. Diz-me o que vês e eu dir-te-ei de que matéria é feita a tua alma e quais as portas de entrada que serás capaz de abrir-me na severidade, na secura ou na fantasia geral do mundo.
Abriu no dia 11 de Outubro no Museu Machado de Castro a exposição que lá ficará até 2 de Dezembro próximo, “Coimbra e seus pintores nas colecções da cidade” e eu aproveito a frase com que abri esta crónica para sinalizar a direcção exacta que desejaria imprimir a estas minhas impressões.
Não vou abordar o conteúdo da exposição quanto aos artistas ou quanto às obras expostas, numa iniciativa que desde já me parece digna da melhor atenção, sem deixar de atender às limitações referidas pela própria Directora do Museu, Adília Alarcão, no prefácio do catálogo respectivo.
Aquilo que me interessa, assunto que já venho abordando de formas e perspectivas diversas nesta coluna, é a importância relativa que o olhar do artista poderá ter no conjunto dos impulsos que polarizam a sensibilidade geral, e qual o espaço possível que a sociedade estará disposta a reservar para essa plataforma alargada e diferente da compreensão das coisas.
Referindo ainda o teor do prefácio, conviria sugerir entretanto, às instituições capazes disso, com o optimismo ingénuo que sempre move as propostas dos artistas, que não ficasse por aqui o balanço das pinturas que foram pintadas em Coimbra no Sec.XX, mesmo sem terem tido a graça de passar às honestas colecções…
A saudade de tudo ser diferente
Uma exposição que mostra uma cidade vista pelos pintores que ela própria elegeu para figurarem nas suas paredes poderá servir para categorizar todas as variantes e componentes da cultura artística desse recanto do mundo?
Servirá essa exposição para nos informar mais sobre os artistas em si, as suas preocupações e a sua capacidade expressiva, ou será a sociedade que se mostra na sua capacidade de ver (ou não) aquilo que se encontra em seu redor?
Que pintura estaria ali perante os nossos olhos se fosse outra a curiosidade, a cultura e o sentido prospectivo do coleccionismo vigente?
Que coleccionadores ou que artistas, que cultura, ou que segmento da cultura é que está ali posta em apreço, para que possamos formar de nós uma ideia que fique (ou não) como denominador comum dum legítimo e autêntico olhar pensativo?
Que pintura, que pintores e que coleccionadores iríamos encontrar exactamente naquelas mesmas salas, se em todos pudesse ter havido no século “um pouco mais de sol, um pouco mais de azul”?
Estudar o passado, criticar o presente, amar o futuro
O catálogo da mostra, edição de 1000 exemplares do Instituto Português de Museus, é um trabalho de inequívoca dignidade, com um texto de abertura marcado pela finura da expressão escrita e pela distinção pedagógica duma visão distanciada à qual não escasseia a generosidade de procurar entender uma realidade que tem sido tão abundantemente ignorada.
Seguindo esta ou outra estruturação observativa, desertos estão praticamente os caminhos que conduziriam ao esvaziamento do tema assim tratado nas breves páginas que ocupa.
À coordenadora Virgínia Gomes, que foi quem concebeu esta iniciativa, coube o texto de remate do catálogo “Ser pintor em Coimbra (1878 – 1978)”, redigido com grande sentido de medida e evidente preocupação de rigor histórico.
Sobre a realização da exposição em si, que nos oferece uma evidente procura de equilíbrio dentro do mais alargado critério de abrangência, debruça-se a nostalgia do visitante sequioso de alguma vibração, dos subjectivismos estimulantes e dos fermentos activos da surpreendente pluralidade que ofereceu a arte do Sec. XX.
A mostra, além de ser ela mesma na inevitável pluralidade de quem a observa, é, na minha opinião, um recado importante para todos os interessados: coleccionadores, artistas, apreciadores críticos, estudiosos, promotores, divulgadores, agentes de ensino, etc.
A todos cabe uma parcela importante de responsabilidade por tudo aquilo que fizeram e não fizeram, por toda a essência da realidade que puderam ou quiseram assimilar, por toda a energia ou abertura na configuração de algo que agora está esgotado e não poder recuperar-se: o intervalo de tempo a que diz respeito.
Qual a motivação que resta, a uns e a outros, no dealbar do terceiro milénio, de prosseguir na tarefa de enriquecer o património da visão das coisas?
Será que houve alguém que aprendeu a ver o mundo pelos olhos dos artistas em exposição? Será que têm herdeiros os distintos coleccionadores ali presentes?
Qual a abertura para se poder instalar um diálogo mais produtivo e visível de situação a situação, entretecendo continuidades novas e enriquecedoras da cultura conjunta que só a procura, a troca e o debate podem estimular?
Quais as portas abertas por onde poderemos entrar um dia destes, encontrando face a face alguns destes notáveis interlocutores isolados e absortos?