Três horas esquerdas e a memória (inútil) da utopia, pela Companhia de Teatro Marionet

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 22 de Março de 2002

Manet

De nada vale falar aos mais jovens de como era a baixa de Coimbra, há 30 anos, quando para cá vim.
E de nada vale construir na mente as utopias fáceis do coração pulsante da cidade onde todos poderiam encontrar-se, desaguando no verdadeiro rio de gente calorosamente livre, servida por portas abertas de hospitaleira luz.
Papagaios sonolentos continuarão carpindo a deserta noite, o soturno fim de semana, a pequena saudade dos cafés espaçosos, com espelhos, onde se cruzariam todos os olhares.

A noite chuvosa e fria de 15 de Março ofereceu-me, apesar de tudo, um estimulante exemplo de resistência activa às vicissitudes da razão prática: a Companhia de Teatro Marionet apresentou no Inatel o seu precioso trabalho de “Três Horas Esquerdas”. Integrando dois artistas cheios da vontade e do prazer do Teatro, oferece-nos qualquer coisa entre o absurdo e o surreal, numa sucessão de quadros amparados por uma constante invenção do jogo cénico.
Os breves textos do russo Daniil Kharms, recheados duma quase tristeza irremediável, são transformados por Mário Montenegro e Nuno Pinto numa agradável sequência de quadros movimentados, espirituosos e lucidamente absurdos.
A cena divide-se entre algo imaginário que acontece do lado de cá, onde duas figuras se multiplicam nos mais variados personagens, e breves desfiles irreais que se passam do lado de lá, onde planetas luminosos se revelam e se extinguem com a fugacidade nostálgica dos seres de vida breve.
Tudo isto desfilando perante o nosso olhar a metamorfose constante de dois actores cuja inventiva dramática e cujo talento histriónico multiplica por muitos a modesta quantia de duas pessoas.
O catálogo editado por altura da actuação do grupo no TAGV afirma textualmente a intenção de nos “fazer um paralelo entre questões sociais, políticas e culturais, sobre as quais Kharms escreveu na Rússia dos anos 30 e a situação em que vivemos nós agora, em Portugal e no mundo”.
É por essas e por outras que eu prefiro nunca ler os programas dos teatros antes de ver com os meus próprios olhos e ouvir com os meus próprios ouvidos.
O humor tão subtil e a caracterização cenográfica que nos oferecem os Marionet é tão longe, paira tão deliciosamente acima da nossa compacta desilusão, que é bem melhor assim, mesmo quando ironicamente configura o fantasma de alguma horrível coincidência com o real assustador.
A homenagem feita a Daniil Kharms, poeta que supostamente morreu com fome (como tantos milhões de pessoas que jamais leram uma poesia e que continuam a morrer, certificadamente, de fome), a opção em ter mantido no texto os nomes russos e a graciosidade dos desenhos do autor presentes no átrio desamparado e frio do Inatel, ficaram a pairar na minha mente como um bailado de espectros gentis.
Como será linda a Rússia dos músicos, dos pintores sacros e dos poetas!
Como será linda a Rússia dos grandes rios e das mulheres claras de rosto amendoado!
Como é empolgante a esperança grande das coisas novas e generosas e inatingíveis!
Vá lá leitor amigo, não faça caso nenhum de mim, mas por favor: da próxima vez não deixe de ir ao teatro. Quanto a isso não há dúvidas: vale sempre a pena!…

Ficha Técnica

A partir de textos de: Daniil Kharms | Tradução: Júlio Henriques |  Encenação: Mário Montenegro e Nuno Pinto | Cenografia: Rita Crespo Sampaio | Figurinos: Maria João Sampaio | Desenho de Luz: Pedro Machado | Fotos e video: Nuno Patinho | Actores: Mário Montenegro e Nuno Pinto

co-produção

MARIONET / Teatro Académico Gil Vicente

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