O Doido e a Morte, oriundos de Montemor

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 27 de Março de 2002

 RB

Tenho uma predilecção irremediável pelos heróis anónimos, por esses a quem ninguém oferece flores, ou medalhas, ou perante os quais ninguém se curva em homenagens de merecida glória.
Penso que os professores do ensino médio, esses que cumprem rigorosamente as suas obrigações (e não são todos, é bem de ver…), que insistem em acreditar piamente na turbamulta de rapazes hiperactivos para quem ninguém tem tempo, deviam ser olhados com o respeito reverencial de autênticos salvadores da humanidade.

Em Montemor-o-Velho, alguns desses professores e mais alguns funcionários públicos, esses modestos obreiros do quotidiano imprevisível – aparentemente os únicos responsáveis por todos os “déficits” deste país de nababos inconsequentes – têm formada uma companhia de teatro que procura restituir a palavra e o gesto ao reino empolgante da curiosa fantasia, lá, donde nunca deveriam ter saído.

Fui ao Inatel ver a sua versão de uma peça de Raúl Brandão, autor a respeito do qual releio algumas páginas deixando-me envolver pela nostalgia das suas dores de consciência e pela coragem confessional que atravessam muitas das suas criações.
“O Gebo e a Sombra” e “O Doido e a Morte” são monumentos da língua e do teatro que bem merecem ser renovados e revisitados, tal como está fazendo o grupo de “theatro dos castellos”.
Um grupo de bravos actores, apostando toda a sua enorme disponibilidade, trazem até nós, em arranjo dramatúrgico cheio de soluções poéticas e bem conseguidas, a segunda das obras citadas.
Lida a peça há muitos anos, recordo-me sempre com o sentido de glória que o teatro sempre transmite às palavras dos actores, da fala do Doido, quando diz, com desapiedada lucidez:

“– Tu não podes chamar-te Baltasar Moscoso e existir por cima o céu estrelado!…”

Acontece que “o Doido”, nesta peça vinda de Montemor, estava a adivinhar-me o pensamento e parou um instante, enfatisando, com uma pausa cheia de intenção, aquelas palavras terríveis!…
Sem saber, restituiu-me esta sensação mágica que por vezes nos transmite o teatro, de sermos personagens eternas, desfilando por entre as nuvens.
O crítico, para não se esquecer que o é, poderia mencionar talvez um ligeiro “déficit” na concepção plástica do arranjo dos actores. Mas é tão bem vista e tem tanta subtileza aquela solução da caixa bombista que é feita de luz, que tudo isso não passa de um detalhe que a fé de quem ama o teatro vai concerteza ultrapassar com sucesso, um dia destes.
O registo “clownesco” e estentórico foi escolhido pela direcção de actores, mas há nisto uma determinação condicionada pela categoria comunicativa dos próprios artistas, que tem de ser entendida.
E como devem ter-se divertido em Montemor os alunos de Matemática e de Filosofia com a figura daquele governador civil com medo, autoridade que corresponde a alguém que eles, por mais que puxem pela cabeça, jamais poderão imaginar que significado tinha aqui há mais de cinquenta anos!…

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