“Visitação, Farelos e Índia”, pelo Teatro de Portalegre, no TAGV

Publicado no Diário de Coimbra em 9 de Novembro de 2002

Se o leitor foi deixando arrefecer dentro de si a bela paixão pelo Teatro Vicentino, se as disciplinas de Língua e Literatura Portuguesa lhe prejudicaram a figura do grande dramaturgo
ou se, pura e simplesmente, nunca teve a possibilidade de entrar muito nesse nobre assunto, “coxia central” vem relembrar o fortíssimo ciclo de realizações teatrais que trazem aos públicos de Coimbra aquela imensa figura da nosso património cultural.
A programação do TAGV vai ao ponto de oferecer, cada Segunda Feira às 18:00 horas, um encontro/conversa que se debruça sobre aspectos específicos do tesouro dramatúrgico implícito em cada peça que vai à cena. Coimbra 2003, “uma cidade viva”, apresenta o seu ProjectoVicente – celebração dos 500 anos da representação do Monólogo do Vaqueiro –  que se designa como Mostra do Teatro Vicentino, até Junho do próximo ano.
Atentos, pois, a este conjunto de realizações, e ainda outras, que não se esgota com isso todo o interesse que merece Mestre Gil. O Teatro de Portalegre, companhia profissional residente – activa desde 1979, com outra participação muito recente nesta cidade e no próprio TAGV, a peça “O Meu Caso”, de José Régio, no 75º aniversário da Presença – veio agora até nós com “Visitação, Farelos e Índia”.
Gente da raia, habituada a uma convivência permanente com o falar de além fronteira, traz-nos essa dimensão expressiva da cultura da época, fortemente impregnada de bilinguismo luso-castelhano.
A composição, mescla de três peças de Gil Vicente, aponta directamente para o tratamento pedagógico deste e doutros aspectos, que incluem a utilização extensiva do castelhano numa magnífica versão do “Monólogo” e noutros papéis, tirando partido duma evidente familiaridade linguística.
Em mais de que um momento o valor da voz como elemento puro de intervenção dramática nos é oferecido através dum longo grito modulado, escura ainda a sala e ausentes os seus actores. A esse expediente de surpresa adiciona o grupo a valorização dos muitos “apetrechos” do actor, as interpolações do canto, do ritmo e das inflexões da fala que se sobrepõem aqui e ali ao discurso dramático, além de gestualidades e trejeitos intencionados,  demonstrando a aplicação do bem preparado conjunto de profissionais de Portalegre.
A figura do marido enganado e da mulher desocupada e ociosa pela sua ausência (aqui primorosamente recortada por actor-homem); a felonia de empregados maldizentes, bem dispostos apesar de tudo; os exageros mal sucedidos do poltrão conquistador e o sucesso caricaturizado do namorado oportunista, a tanto monta o capital de contradições de conteúdo deste espectáculo donde todos podem retirar um valioso e bem tratado momento de convivência com a palavra do “pai de teatro” que foi Gil Vicente.
O grupo foi aplaudido por uma sala menos bem composta que o que mereceria o espectáculo, contando a plateia com um bom número de jovens destes que, nos bancos da universidade, aprofundam o seu interesse pelo tesouro da nossa dramaturgia.

MOSTRA DE TEATRO VICENTINO (publicado no programa de espectáculo):

VisitacaoJuntar por sua vez, três autos no mesmo espectáculo, tem a ver com outra ordem de razões: o Auto da Visitação (ou Monólogo do Vaqueiro) corresponde à estreia vicentina de 1502, aquando do nascimento do futuro rei D. João III. Quem tem Farelos? utiliza, pela primeira vez, o português como língua cénica e o Auto da Índia é sobejante conhecido, como leitura na escolaridade obrigatória. Pretendemos, ainda, dar seguimento a um possível desfecho da Isabel de Quem tem Farelos, Aires Rosado torna-se o Lemus e, finalmente, Ordoño passa a ser, anos depois, o Castelhano Vinagreiro. A figura da mãe não aparece como tal e surge, no Auto da Índia, corporizada pela Moça. Constança mantém o mesmo tipo de desejos e recusas de Isabel. A opção da distribuição do papel de Isabel/Constança a um homem coincide também com uma prática corrente em Portugal, até ao século XIX: a de serem actores masculinos a representarem personagens femininas. Esperamos ter dado um ar ligeiro a este espectáculo mantendo, no entanto, o essencial das intencionalidades de Gil Vicente.

Teatro de Portalegre

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