Gil Vicente, memória e criação, pel’A Escola da Noite

"Ensaios Vicentinos" edição "A Escola da Noite" 2003, foto Augusto Baptista

“Ensaios Vicentinos” edição “A Escola da Noite” 2003, foto Augusto Baptista

texto publicado Pelo Diário de Coimbra em 14 de Novembro de 2002 e citado (pgs. 323) na obra cuja capa está acima reproduzida.

Perante a estimulante ofensiva de espectáculos de teatro convém reforçar a notícia: A Escola da Noite deu início aos seus “actos de memória e criação” tão felizmente corporizados pelo seu surpreendente trabalho “Vicente na Escola”, em cena na nova Oficina Municipal do Teatro.

Se o leitor pensa que o palco cénico é uma abertura dinâmica sobre os mais vastos horizontes e uma explosão natural de segredos e surpresas; se não deixou enregelar dentro de si a memória dum clássico como Gil Vicente e acredita que a convergência de diferentes modalidades artísticas não estorva, antes reforça, a entrega da palavra como acto cristalino da mais pura transparência; se tudo isto for, associe-se prontamente ao grupo exigente dos admiradores do trabalho desta companhia. Desde o encaminhamento dos espectadores através dum “túnel de palavras” à visualização dos mais diversos ângulos do espaço cénico, desde a geometria variável de espectáculos proliferantes dentro do espectáculo propriamente dito, tudo amplifica o conceito de cena ou de acto, numa sobreposição de linguagens, ritmos, percussões, desfiles, acrobacias, onomatopeias e variedade abundante de outros utensílios, que um coeso e bem exercitado conjunto de jovens vai desenvolvendo em contraponto, ou eco, ou retrato simbólico das palavras ditas.

Contradições entre esta exuberância expressiva e o património, para alguns inamovível, do texto dramático? Não vi nenhumas, antes pelo contrário. Momentos tocantes e figuras encantadas não faltam ao longo desta apresentação de Gil Vicente, inovadora, cultíssima de referências e que apetece rever.
Lembro a elegantíssima Ama, tão bela e cativante, mas tão longe da imagem usual e fácil da adúltera, que trata os amantes com a mesma serena ternura com que acolhe o esposo, homem-barco que perde seus passos no mar e deixa as naus de papel, à deriva, no palco dos sonhos.
E o reencontro com um Vaqueiro tão autêntico e vital, tão palpitante de suor e de sorrisos, que entra em nós com um entusiasmo quase épico, com camaradas que brincam e saltam e dão a deixa para a palavra esquecida na torrente da alegria emocionada.
Que dizer de Maria Parda que surge como saída de uma gravura de Goya, da profundidade fantástica duma banda desenhada ou da lonjura dum longo “travelling” cinematográfico, transfigurado o solilóquio insatisfeito de securas e queixumes pelo cortejo de ritmos e acentuações dramáticas?
A figura do Velho da Horta, para mim geralmente arrumado naquela área menos espampanante do elenco vicentino, surgiu-me inteiramente humanizado e reforçado em toda a sua pujança de figura sensível e vulnerabilizada pela paixão.
A metamorfose por excelência é a daquela pobre mulher desvairada que se transforma em árvore pronta ao plantio e regada, que desperta feita uma das mulheres mais lindas que há no mundo e vai colher flores no próprio céu, para as oferecer a um homem encantado, como só encantados e iludidos podem ser os velhos, não por serem velhos, mas por serem apaixonados.
Estas e tantas outras figuras incontáveis, apaixonadas como nós por este novo e revitalizado Mestre de Teatros que foi Gil!…

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