Publicado Pelo Diário de Coimbra em 2 de Dezembro de 2002
A Mostra de Teatro Vicentino prossegue com prazer e proveito. Dia 18 teve lugar mais um prólogo com apresentação de Joaquim Correia, ilustrado por intervenção do actor Nuno Pinto. A seguir esteve em cena a co-produção ENTREtanto Teatro, Trigo Limpo e Teatro ACERT, com uma Barca do Inferno que não vai esquecer facilmente. A apresentação, com multiplicidade de participações estético-teatrais que não é possível referir em tão breve espaço, quase dispensa uma apreciação crítica pelo facto de atingir aquele objectivo primordial em qualquer realização deste tipo, mas raramente conseguido: é um verdadeiro espectáculo, prodigalizando tudo o que é desejável num serão destinado à fruição do teatro, “escaparate de todas as artes” como diria José de Almada Negreiros.
A distribuição dos papéis, repartidos por apenas três actores, como pode ter acontecido na companhia de Gil Vicente, é apoiado por um registo musical expressamente composto para o efeito que chega a transportar-nos ao clima sumptuoso duma encenação operática.
O artefacto cenográfico principal, a barca, foge completamente ao convencionalismo da verosimilhança, conjugando a funcionalidade dum brinquedo de montar e desmontar com o fascínio que a sua concepção estrutural transmite, a qual um simples efeito de luzes transforma, ao bel-prazer do enredo Vicentino, de barca do inferno em barca do paraíso. Tal ambivalência estende-se à consideração que nos é proposta para as pessoas do drama. O diabo, representado por uma insinuante presença feminina, transfigura-se em anjo, pela simples adjunção dum lenço branco, translúcido e angelical. Iria jurar, contudo, que é diminuta a convicção posta nessa transmutação milagrosa. Com efeito, nem o anjo assume a transparência ingénua dos tripulantes do seu Batel Divinal, nem o diabo, tratado com evidente sobranceria por alguns dos condenados à Ilha Perdida, é tão assustador assim. Essa sobreposição de contrários, esse claro-escuro, enriquecem de complexidade a projecção produtiva do entrecho, na mente dos espectadores de uma outra época.
A predilecção de Gil Vicente vai claramente no sentido da provocação e da crítica, e eu pergunto qual é a capacidade que poderá existir nos dias de hoje para trazer à luz da ribalta um tão completo elenco de figurões, traficantes e oportunistas como os que são ali desmascarados pelo julgamento explícito e clarificador da sátira.
Mais pergunto se é possível descortinar por aí, na actualidade, patrocínios tão abertos e tolerantes como foi, no seu tempo, o da Rainha Dona Leonor para com a produção vicentina.
Terminada a peça tive o privilégio de falar com um actor brasileiro, director artístico do ENTREtanto, que vive e trabalha em Portugal, na cidade de Valongo, cujas cinco freguesias possuem, cada uma delas, um teatro equipado em actividade devidamente apoiada.
Gostava de comentar também o excelente trabalho dos actores e mais a circunstância de todos os papéis do artista que menciono terem sido falados com sotaque brasileiro, mas o meu tempo de antena acabou e por isso me despeço, até um dia destes, numa sala de teatro perto de si!…