Publicado Diário de Coimbra 3 de Dezembro de 2002
Abre na Casa Municipal da Cultura uma exposição de pintura de Carel Verlegh, artista cuja obra já tive o gosto de apresentar com mais detalhe, noutra ocasião, aos leitores destas “conversas”. Vem mostrar-nos, desta feita, uma longa série de pinturas, organizadas de forma a dar-nos uma visão retrospectiva da sua obra. Em contraponto são apresentadas peças de escultura de Armando Martinez, galego de origem e cidadão de Coimbra pela constância com que regressa a esta terra e pelo modo como deu início – aqui mesmo, há mais de vinte anos – ao seu trabalho artístico. É especialmente laboriosa a actividade que desenvolve nas pedreiras e oficinas de escultor da região de Cantanhede.
Carel Verlegh ou a cor como metáfora da energia do mundo
Carel Verlegh evidencia, desde os seus primeiros trabalhos, uma enorme capacidade de transformar em paisagens interiores a sua leitura do mundo circundante, captando em sínteses de elevada densidade cromática uma floresta de seres em permanente luta corpo-a-corpo, cuja configuração, já muito distanciada do referencial que lhe deu origem, se autonomiza na mais alargada fantasmagoria, fronteira ou referência da indescritível energia do mundo. Aparentemente centrado em torno de esquematismos que o afirmaram como pintor facilmente reconhecível são, contudo, muito alargados os recursos da sua gramática expressiva.
Armando Martinez, a “pedra-mãe” e a alegria sem fim da viagem
O artista que escolhe a pedra como meio favorito de trabalho tem de ter, além da cultura e da sensibilidade respectivas, algo de mais enérgico, ou mais antigo, que o sólido saber necessário a todas as disciplinas da criação artística. A escultura de Armando Martinez reflecte a experiência viva de contactos com a ampla diversidade do material lítico, e atestam o sentido de ofício que liga qualquer escultor de pedra à crepitação de antiguidade e aos metamorfismos da formação das rochas. Ouvi-lo contar histórias de fósseis e blocos de pedra descobertos, mencionando o seu nome e a sua abundância, situa-nos algures entre o cenário imenso e mitológico das montanhas e o labor industrioso e poeirento das pedreiras donde saiu a matéria de que são feitas as catedrais. Sem espaço para poder trazer-vos aqui um estudo sistemático de toda a sua obra, espalhada ao longo duma activa carreira internacional, iria referir principalmente o predomínio dum sensualismo sólido e fundamental, em sínteses regidas pela moderação e pela economia de meios. A pedra esculpida permanece, apesar de esculpida, como forma simbolicamente compacta à flor da qual se desenvolvem configurações humanizadas, geralmente surpreendidas no gesto protector do abraço, no esforço titânico da maternidade ou no apelo fundamental da paixão. É acentuada a modernidade sintética de formas opulentas, de cunho por vezes megalítico, apenas reduzidas no seu impacto por serem concebidas desta feita como trabalhos de reduzidas dimensões e mais fácil apresentação. Noutro tipo de esculturas a forma alonga-se na perpendicular, atingindo o esquematismo totémico dum grito agudo de pedra, onde as mesmas sugestões de referência sensual e afectiva podem surgir, umas vezes de forma quase explícita, outras vezes mais francamente abstractizadas. Em elevado número de obras é posta em evidência a variedade expressiva do material, que chega a incluir espécies rochosas muito raras, sendo habitual o contraste simultâneo de zonas lascadas e outras polidas. Artista que viaja intensamente, mantém acesa a chama dum sentido de convivência que tem produzido frutos no estreitamento de laços entre Portugal e a Galiza. Presente em largo número de obras públicas no seu país natal e em diversos outros, da Itália à Escócia, tem também um largo número de obras em jardins e praças portuguesas, numa clara demonstração da sua energia comunicativa, em tudo compaginável com o génio irrequieto do povo Galego, que connosco partilha a irrequietude insatisfeita de trota-mundos, fura-vidas descobridores e empreendedores de torna-viagem.