Baal de Brecht, pelos Artistas Unidos, no TAGV

Publicado Pelo Diário de Coimbra em 13 de Março de 2003

Por efeito da ideologia de crise há uma série de hábitos culturais que se vão perdendo, fingindo todos que é natural que assim seja, e que não há nada a fazer.
Lembra-se o leitor duns libretozinhos que se davam ou se vendiam antes de qualquer peça de teatro? Para agravo da minha ignorância noto que rareiam nos vestíbulos teatrais. Os que sobrevivem, ganham por vezes em aparato gráfico, mas limitam-se a ser a lapela de curricula que ninguém lê ou das notabilidades patrocinantes.
Baal, Brecht, os pavores da guerra de catorze, o expressionismo alemão, todos os seus antecedentes e contemporaneidades, abrem para um universo tão imenso, que eu não sei ao certo que parcela do estar, do dizer e do sentir daquelas figuras teatrais poderá habitar entre nós como aquisição da nossa sensibilidade ou do nosso saber. Parece-me óbvio que este tipo de acontecimentos corre o risco do equívoco se ao processo faltar uma indispensável aquisição de cultura, ficando apenas como figuras de estatística, alimento curricular para quem organiza, promove e patrocina, e pouco mais…
Abre o espectáculo o grande coro de Baal, poeta com nome de deus bíblico, tremendo em seu desespero de rupturas elementares, transitário insatisfeito da vereda incómoda que do desejo cego conduz ao embotamento e que deste leva à morte. Ficamos sabendo, pois, que é no território da expressão poética que se situará mais essencialmente a condução do espectáculo.
Nem a vertente cabaretística, nem a contextualização histórico-política, nem as notações erotizantes (é evidente o pudor no desenvolvimento das figuras femininas, tão ousadas noutras encenações) virão a assumir espaço equivalente ao mito de Baal, poeta associal, devastado pelo seu radical sentido do prazer e pelo seu egocentrismo sem margens, mais do que pelo álcool, cuja fruição é um combate permanente e obsessivo, como se dum símbolo ou dum destino se tratasse.
O cenário da peça é constituído por uma volumosa estrutura multifuncional produtiva de perspectivas artificiais, onde escassos elementos de diferenciação, nomeadamente a luz e os efeitos de fumo, vão introduzindo as necessárias alternâncias ao desenrolar da acção dramática.
A música é, como vulgarmente em Brecht, um poderoso mediador, para o que muito contribui a capacidade expressiva do protagonista (Miguel Borges) no traçar duma figura musculada, impiedosa e destemida. Declamando envolto pela neblina nocturna ou cantando de guitarra eléctrica em punho como um autêntico “rock and roller”, oferece-nos uma alusão a  mitologias doutras gerações, sustentando o texto de Brecht o espectáculo, a um nível de inconfundivel caracterização.

Finda a representação, que no conjunto pode caracterizar-se como uma impressionante e notável realização de teatro, atardei-me mais um pouco pelo vestíbulo, francamente emocionado, circulando por entre os grupos de presentes, procurando sem excessiva subtileza escutar uma ou outra ressonância ou comentário apreciativo.

As vozes, moderadamente colocadas, davam-me conta duma escassa paixão interpretativa, sendo evidente que o rio de gente que ali estava se ia esgueirando, como fresca água corrente, sem estremecimentos de exaltação poética, para dentro dum quotidiano cheio do pipilar dos telemóveis e de outras imperiosas necessidades e acertos dum descuidado porvir.

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