Publicado Pelo Diário de Coimbra em 19 de Março de 2003
A estreia nacional de uma obra tão fecunda como Fuenteovejuna de um dramaturgo tão enorme como foi Lope de Vega honraria uma cidade capital de cultura que fosse capaz de encher uma sala de teatro como o TAGV, no Dia Mundial do Teatro.
Porque assim não foi, uso o modo condicional, na fé de que, mais por ignorância simples ou por simples cansaço de tantas inaugurações e cerimónias, haja muita gente que ali não veio para dar fé da palavra clara de Lope, “ poeta máximo del cielo y de la tierra”, génio imenso, figura vibrante e quase indescritível, protagonista sem margens do bem chamado Século de Ouro de Espanha.
O primeiro utensílio notável usado pelo encenador Pedro Alvarez-Ossório foi a talentosa versão textual de Natália Correia que, escrito em 1973, “exalta e justifica a rebelião de um povo” pelas razões de opressão, prepotência e abuso que em qualquer parte ou em qualquer momento possam, infelizmente, verificar-se.
À elegância poética que o vigor de Natália soube associar qualidade dramatúrgica, acrescentou a concepção do espectáculo uma estética de claridade e de explicitude que é raro ver-se.
Séria e replena de sentidos históricos e literários, a peça de Lope é apresentada em registo de festiva exaltação do gesto e da palavra, sendo criteriosa a utilização que é feita do potencial de razões contraditórias que o entrecho disponibiliza.
Se digo criteriosa não quero dizer enfraquecida, pelos motivos que levam Laurência a invectivar, olhos nos olhos dos espectadores, a cobardia cívica, o escapismo e a moleza indiferente dos que se deixam afundar no abandono da sua própria honra.
Se digo criteriosa, repito, não é porque a configuração do inimigo não esteja bem explícita, no Comendador e nos partidários da sua laia, sem rodeios ou complexos de dúbia complacência.
Lope de Vega deu um sentido de utilidade política à sua obra, como um dos mais distintos criadores do barroco espanhol face ao fim da Idade Média e à ascensão do poder central do estado no dealbar da época moderna. Nesta encenação de Fuenteovejuna, porém, o ódio da colectividade pelos seus opressores é temperado por uma facilidade evidente na mudança de registo que da revolta vingativa por imperiosa necessidade se transforma em alegria ingénua. Para não falar da forma explicitamente irónica com que é tratada a figura dos monarcas, a rainha prepotente e sem escrúpulos e o rei amorfo e sem carácter.
A abrir o espectáculo veio ao proscénio uma atriz que leu o discurso de Tankred Dorst para o dia Mundial do Teatro. Entre muitas coisas interessantes ali foi referenciado o seu carácter de “arte impura”, por lançar mão abertamente de tudo o que se atravessa à frente do homem e à frente da vida. Parece-me aliás que posso utilizar essa ideia para elogiar esta peça que o Centro Dramático de Évora (CENDREV) estreou no TAGV, para honrar Coimbra, com a galhardia e talento duma pequena multidão de artistas de teatro.
Se não eram tantos assim e não chegavam a ser multidão, tanto lidaram e viveram em cena que, pelo menos, foi essa a ideia com que fiquei.
Estreia de Fuenteovejuna pelo CENDREV, no TAGV, no Dia Mundial do Teatro
Leave a reply