Publicado Pelo Diário de Coimbra em 21 de Março de 2003
A projecção universal do sucesso serve mal o génio dos verdadeiros artistas criadores, aqueles que implantam no cenário do mundo o rosto mais apreensível das suas contradições e perplexidades. Particularmente a publicidade, como praga invasora de vulgaridades parasitárias, capaz de tudo para cativar o olhar incauto do consumidor potencial, é um dos processos mais fatigantes do esvasiamento e até da falsificação da imagem como factor de encantamento sensível ou de descoberta reflectida.
O espectáculo de teatro que apresentou a companhia de Teatro de Marionetas do Porto defronta-se com a sobre-utilização a que a obra de Magritte tem sido sujeita , por ser um escaparate fortemente sugestivo de paradoxos e surpresas. A leitura da peça tal como foi explicitamente anunciada tem que contar, preferencialmente, com a familiaridade da obra do famoso artista belga, nacionalidade de criadores surrealistas de inquestionável talento e nem por isso tão universalmente aceites, como é, entre outros, o caso de Paul Delvaux.
Isto como resposta aos meus amigos que questionavam, à saída do teatro, a impenetrabilidade duma grande extensão do espectáculo, de cuja linguagem só escassamente se haviam apropriado, e aos quais fui dizendo que me parece que o trabalho das Marionetas do Porto trouxe até nós um ensejo generosamente abundante de interessantes alusões Magritteanas.
Acontece que na transmutação de reinos que vai da pintura ao teatro, a mediação que nos oferece a propensão literária e filosófica da obra do pintor, não é fácil nem é imediata. Uma peça desta natureza não conta com nenhuma espécie de enredo, foge ao convencionalismo de um entrecho, cabendo à nossa disponibilidade a aceitação de alusões subtis, o entendimento do jogo cénico como tal e, por acréscimo, como veículo dum certo tipo de universo comunicativo.
De muito bom efeito me pareceu a sonoplastia, reforçada por uma acordeonista em palco que até a partir de simples toques mecânicos nas chaves do instrumento ia acentuando efeitos e sublinhando ruídos. O misterioso silvo marítimo que varre incessantemente o “plat pays”; o tic-tac dum relógio de sala, quinta-essência de todos os mistérios e de todas as contradições que o pintor incansavelmente glosou, assumindo com certa volúpia o convencionalismo burguês e urbano que a própria obra contradiz e o rumorejar da água nocturna que amortalha a mais dolorosa ausência, a mãe, a dona do rosto oculto pela “écharpe”.
Vieram até nós igualmente a surda respiração íntima, os sinos e as gargalhadas, e um sem número de palavras/aforismos que na obra em apreço são tão abundantes e essenciais. Para matizar um pouco o sentido de apreciação positiva que suscita este espectáculo, como tantos outros que nos visitam, uma pequena confidência lateral, em jeito de pergunta:
será possível que algum dia irrompa do palco, sem que ninguém espere, algo de verdadeiramente provocante e inovador, que desafie o sentido de medida da tal trivialidade balofa e burguesa de que Magritte foi tido como provocador e sabotador tranquilo?
Será que a linearidade intelectual, o humor comedido e a reincidência poética serão os únicos destinos possíveis das nossas timoratas pretensões e que “ceci n’est pas …”?