Publicado Pelo Diário de Coimbra em 14 de Maio de 2004
Helena Faria e Alexandra Silva são duas atrizes excelentes, cuja persistência nas artes de palco já granjeou um abundante lote de recursos expressivos de que dá testemunho abundante a peça que tem ido à cena no Inatel, depois dum largo percurso de representações noutros locais.
A peça é constituída por diversos quadros que fazem desfilar perante nós um variado grupo de casos femininos, criaturas situadas naquela margem da vida em que os desencontros e a caracterização problemática se cruzam com essa debilidade a que chamamos ridículo, e que tão mais frequentemente abunda do que à primeira vista pode querer parecer-nos.
A densidade de conteúdos e o primoroso desempenho ficam na memória de quem tenha visto a peça, como segredo e privilégio bem guardados.
Com efeito, numa noite de festas estudantis como há tantas, em que milhares de jovens saturam a cidade de ânsias naturais e alguma sofreguidão incerta de futuro, entra o espectador na sala enorme de espaços vazios e assusta-se, transido pela solidão que rodeia o culto excelente das palavras sentidas.
Leio o modesto folheto editado pela Associação Cultural Camaleão e reparo que a ficha técnica do cuidadoso espectáculo pede meças ao número de espectadores presentes.
E não é por ser esta a peça, nem por serem estas as actrizes (que já sublinhei serem excelentes), nem por ser esta a sala (que até está situada no caminho de toda a gente que atravessa Coimbra numa noite de sombras e sonhos!…)
A falta de meios, uma história mal contada
Cada sociedade elege os ídolos que quer e que entende, e as suas maiorias estão atentas a tudo aquilo que comporte uma compensação imediata, uma facilidade, um estímulo gratuito, mas nem sempre inóquo, partilhado pelos ecrãs da notoriedade.
Estar na crista duma onda iluminada, tonitroante de fama e de sucessos, eis o que cativa e reune multidões. E os pastores de entusiasmos sem sentido não regateiam os meios, os milhões estão ali, palpitantes, que não me deixam mentir.
Daí que me canse, e ofenda até, ouvir a cantilena roufenha da falta de meios para tudo o que seja um esforço semeador e inteligente.
O futebol é a mais milionária das encenações, a que agita mais dramas vazios e anima mais conflitos, a que está mais à mão de toda a gente para alívio de tensões diárias, de entusiasmos que sufocam sob a pressão de carências sem nome.
No Inatel, com as mesmas velhas roupagens que lhe conheço de há um ror de anos, um par de fervorosas beatas em delírio de idolatria folclórica, uma atriz porno remoendo no seu íntimo medos e desejos desordenados, uma feirante de língua de prata em fuga com filhos nos braços e várias outras figuras de vivo recorte cénico, desfilam perante nós com toda a eloquência de trajectos difíceis, verdadeiros, pungentes ou complexamente ridículos!
Na rua, a caminho da festa maior, vários grupos de estudantes caminham duvidosamente alegres (ou quase tristes…) alguns demasiado ébrios para darem bom nome ao vinho que beberam.
O teatro fica à espera deles. Um dia, quem sabe, talvez com ele se cruzem, em sua ilusão e ânsia de futuro.