Publicado Pelo Diário de Coimbra em 4 de Junho de 2004
O Teatro é um acontecimento para se festejar de pé, ombro a ombro, com alegria e lágrimas que fazem tremer os lábios por se ter soltado nas veias o sangue espesso da verdade. Se isso for em praças de gente madura, tanto melhor, para que não ecoe solitariamente a voz que deve ser de muitos, para toda a gente.
“Daquel Abrente”, memória de uma alvorada
Em visita de qualidade veio da Galiza a proposta cenográfica citada, em intercâmbio organizado pel’A Escola da Noite que também se apresentou em Santiago de Compostela com trabalhos sobre Gil Vicente, para trazer testemunho do corajoso acontecimento, há vinte e cinco anos, da fundação do teatro profissional naquele país.
Se digo país penso na vontade de afirmação cultural e na capacidade de organizar essa e outras modalidades de intervenção, das quais se salientam hoje as peças escritas por dois notáveis autores galegos : “Laudamuco, señor de ningures” , de Roberto Vidal Bolaño e “O velorio” de Francisco Taxes.
Obras escritas nos anos setenta, num momento de transformações importantes na Península Ibérica em geral e na sociedade galega em particular, recorrem a uma estética de clareza e frontalidade emocional onde é possível descortinar raízes da expressão artístico-literária vincadamente autóctones umas, e de perfil universalista, outras.
Inevitável é mencionar a qualidade de amadurecimentos acumulados neste quarto de século por alguns dos actores em cena. A figura imensa de Rouco, por exemplo, feita por Rodrigo Roel, encarna a figura do servo e sustentáculo único da paranóia de um rei que já não é, no plano de descolocação patética de uma farsa que abre caminho à mais certeira ironia e ao mais devastador retrato dos poderes absurdos, das proeminências ridículas e das dignidades putrefeitas.
“O Velório”, que foi na época em que estreou uma obra revolucionária e que já em 1978 arrastou uma multidão de entusiasmo ao FITEI do Porto, ao qual regressa este ano, é o traço expressionista a branco e negro de uma explosão de indignações recalcadas perante o ocaso do poder, simbolizado pela morte da figura opressora e tutelar. A acção desenrola-se no clima de excesso e destemperança das festas e ritualidades parateatrais, apetecendo ainda mencionar o “esperpento”: género teatral que surge com “Luces de Bohemia” de Ramón del Valle-Inclán, em 1924, e no qual se fundem de modo particular o sentido da farsa e da tragédia.
Na continuidade que estes espectáculos evidenciam há que referir também o conjunto musical dos irmãos Morán, protagonistas do roque galego dos anos setenta e que actuam ao vivo ao longo das duas peças com sublinhados e intervenções de efeito surpreendente.
A fala galega, só deles ou também nossa?
Se há razões que a noite húmida e quente deste fim de Maio oculta em seu segredo, não deixa de ser impressionante que tenhamos podido assistir a todo um serão de teatro em fala estrangeira que todos nós fomos percebendo de maneira intuitiva. Assim à maneira de uma coisa antiga que perfeitamente reconhecemos, sem termossido obrigados a ter de estudá-la na escola.