Eduardo Nery no CAE da Figueira da Foz, azulejo, mosaico, vitral e tapeçaria

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Publicado Diário de Coimbra  1 de Setembro de 2004

Até fins de Setembro é ainda tempo para visitar a notável exposição retrospectiva de Eduardo Nery no Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz, que abarca a actividade do artista durante mais de quarenta anos em disciplinas tão variadas como o azulejo (com parte de leão), o mosaico, o vitral e a tapeçaria. De assinalar a qualidade da exposição quanto à distribuição espacial, ao desenvolvimento estético-pedagógico e à natureza especialmente valiosa dos conteúdos. Foi organizada por entidades museológicas nacionais, mostrada em Lisboa e Porto, e deveria ser chamada a desempenhar um importante papel junto de públicos diversos para além dos que são assíduos na visitação de actos artístico-culturais.

À atenção de donos e mestres de obras

Se tivesse o privilégio de escolher leitores, gostaria hoje de chamar a atenção de donos e mestres de obras, empreiteiros, empresários, arquitectos, autarcas ou outras entidades que tenham a ver com a preservação e desenvolvimento do nosso património edificado. Muitos dos edifícios que são construídos no nosso país ostentam, no que toca a processos de resvestimento exterior e interior, soluções que nada têm a ver com a cultura artística do país ou com as suas características climáticas, estendendo-se a questão ao interesse arquitectónico que deveria merecer o chão, as fachadas, as paredes, os vãos e os tectos. As imensas superfícies envidraçadas e os cinzentos ou castanhos metalizados, por exemplo, bem podem fornecer o toque de espavento pseudocosmopolita,  mas carecem da nobreza de materiais e técnicas mais conhecidas entre nós, obrigando em certos casos a vultuosos dispêndios energéticos em aquecimento, no inverno, e em ar condicionado, no verão. Onde contudo mais rotundamente falham é na ruptura com modelos de caracter estético que conferem ao nosso contexto urbano as suas características próprias e a sua marca de individualidade. Os hábitos dos agentes construtores e o isolado elitismo da cultura artística institucionalizada são realidades que entre si se ignoram, donde a fácil vitória do novo-riquismo invasor e do facilitismo consumista, eivados muitas vezes dum eriçado e lamentável mau gosto. Parece que o país enjeitou ou é incapaz de defender e criar os seus próprios modelos, desperdiçando riqueza na importação de outros que lhe são completamente alheios. É por isso mesmo que desta vez não me dirijo aos intelectuais, aos ilustrados professores e aos estudiosos, tão atentos às vertentes históricas consagradas e tão distanciados das realidades concretas do hoje, com suas determinações e exigências naturais.

A exposição de Eduardo Nery devia ser visitada pelos homens que vão ter na mão o lápis que faz os esquiços dos ante-projectos, os que têm a incumbência de elaborar os cadernos de encargos ou que empunham a caneta que assina a ordem de construir as obras. A cidade de Coimbra, onde não abundam os exemplos da utilização moderna de meios cerâmicos para revestimento ou decoração parietal, dá mostras crescentes de já ter adoptado a famosa receita das fachadas envidraçadas, das precárias superfícies de fosco metalizado e aquelas coisas espelhadas que brilham muito, estereótipos copiados não se sabe donde, reflectindo o gosto, ou falta dele, de quem tem pressa no acto de escolher e completamente ignora os imaginários que fizeram de Portugal um país com arte e cultura próprias.

Azulejos Eduardo Nery, Metro Campo Grande, Lisboa (Wikipedia)

Azulejos Eduardo Nery, Metro Campo Grande, Lisboa (Wikipedia)

Os painéis antigos também foram arte contemporânea

Algumas importantes e prestigiadas empresas que durante muitos anos produziram cerâmica com finalidades construtivas, decorativas ou simples utilidades de uso quotidiano saíram já de cenário. O seu trabalho ficará na memória dos que tiverem a coragem de querer saber quem somos, páginas de um presente “passado” ao qual se virou costas porque importar é mais “barato”, e aquilo que por cá se faz “já está mais do que visto”. O desfilar de exemplos oferecidos pelas intervenções urbanas de Eduardo Nery são duma imensa variedade  e riqueza, não deixando de evidenciar um desejável sentido renovador. São outras tantas vitórias do operador estético junto da sociedade produtiva na qual se insere, e da qual depende inteiramente no acto esclarecido da encomenda. A renovação e o reforço da capacidade produtiva dum país não caiem do céu aos trambolhões, e é preciso que todos os agentes construtores se lembrem disso. Os magníficos painéis de azulejos que foram produzidos em Portugal durante os séculos passados eram, nessa altura, arte contemporânea e, muitas vezes, fortemente inovadora. Muitos deles foram exportados e, onde quer que se encontrem, são ainda motivo de enobrecido prestígio e admiração. Quem quer que os encomendou fez o melhor dos negócios: serviu o presente e garantiu o futuro.

Se os homens deste início de terceiro milénio não sabem disso, como poderão ganhar alguma vez o direito e o mérito de ser lembrados como verdadeiros agentes de evolução e progresso? Como poderão alguma vez enunciar com honra, a par do proveito imediato, a qualidade e o valor do produto do seu trabalho?

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