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Publicado Diário de Coimbra 15 de Novembro de 2004
É muito vulgar que o custo de grandes obras dispare a certa altura do seu processo construtivo, acabando muitas vezes num preço cujo montante iguala, e por vezes supera, o dobro da verba orçamentada.
Não é preciso ilustrar com exemplos a enorme saga da “multiplicação dos milhões”, de tal modo se tornou vulgar o aparecimento de casos com o picante anexo das famosas faltas de “transparência”.
Se, contudo, um artista apresentar uma proposta para inclusão de uma obra de arte dignificante dum empreendimento, seja ele qual for, “ai Jesus que não há meios, ai meu Deus que grande crise”!… Mesmo nos casos em que o custo da peça artística não atinge sequer uma modesta fracção das alcavalas da nebulosa “intransparência”…
Do número incontável de propostas a quem ninguém respondeu, das que tiveram resposta ínvia ou, ainda pior, das que foram encomendadas e nunca foram adquiridas, nem é bom falar!…
O que seria de Coimbra se os homens dos séculos passados tivessem tido os mesmos critérios e evidenciassem a mesma indiferença perante os valores da arte?
Existiriam a capela da Universidade ou a Biblioteca Joanina? Os retábulos da Sé Velha e a sua Porta Especiosa? A talha dourada, as pinturas e os azulejos de mais de cinquenta palácios e igrejas? A pedra talhada dos relevos, as esculturas de vulto, a nobreza das torres, os campanários luminosos, a musicalidade comovente dos sinos e a ressonância orquestral dos órgãos?
O património, as expressões da modernidade e as novas formas de ver
As excepções existem, apesar de tudo, como migalhas esquecidas sobre a toalha enorme das edificações destes últimos 80 anos, mais coisa, menos coisa.
É sobre esse género de exemplos que estas “conversas” já começaram a debruçar-se, considerando certo tipo de obras notáveis poucos “vistas” e escassamente entendidas.
A instituição encomendante da obra mencionada em título já colheu, em termos da notoriedade alcançada pela mesma, o imenso reconhecimento que é patente em capas de livros, catálogos de exposições de âmbito nacional e internacional, cartazes de acontecimentos, menções em obras de autores estrangeiros, etc.
O painel foi aplicado naquela parede de fundo da agência, superfície quase impossível de conceber como portadora duma tal obra, por alcançar dois pisos diferentes que a não deixam ver inteira e situada detrás duma escada de dois lances, felizmente de concepção interessante pela relativa leveza da estrutura à base de metal e madeira.
A solução do artista, perfeitamente inserível no itinerário das suas preocupações estéticas no domínio da azulejaria e da pintura dita “op” ou seja, produtora de efeitos ópticos, foi uma composição abstracta que pudesse resistir à visão por sectores, evidenciando uma pujança cromática apoiada na riqueza de 16 cores organizadas numa sequência contínua retirada do espectro solar que, entretanto, parecem muito mais numerosas devido às interacções respectivas.
Ao nível da técnica cerâmica constitui uma inovação impossível até há poucos anos, dado que durante séculos a paleta do pintor de azulejos se encontrou reduzida a certo grupo de pigmentos, devido à instabilidade das cores que se situam na zona mais “quente” do espectro, os laranjas, os vermelhos, os roxos, os liláses, etc.
Atribulações de um quadrado amarelo em fundo de várias cores
O estudo da dinâmica cromática pode bem ocupar a imaginação criativa de qualquer cliente que espere para ser atendido e se ocupe decifrando planos que se interpõem, a interacção das cores e o jogo de efeitos visuais muito complexos.
De facto, ali se pode dar uma aprofundada lição sobre teorias da cor, entre as quais recordo os célebres tratados de Johannes Itten e as aprofundadas experiências dum artista como Joseph Albers, de quem recordo uma explêndida mostra, há um bom par de anos, levado a cabo pela saudosa Casa Alemã, sob o impulso raro e inolvidável de Karl-Heinz Delille.
Um quadrado amarelo será sempre igual a si próprio, ou pode “transformar-se” consoante esteja em fundo verde, azul, roxo, vermelho ou alaranjado?
E uma tira verde claro ou vermelho forte sob o efeito de quadriláteros de cores diversas é sempre categorizável como “cor de fundo” ou emerge, a certa altura, como “figura” de primeiro plano?
Sobram várias perguntas como estas , mas eu deixo à perspicácia visual do leitor, quando ali se deslocar, a tarefa de desmontar planos, ritmos, intersecções e interacções as mais diversas, com o privilégio de tal exercício ser possível de todo e qualquer ângulo de observação.
É de realçar que o painel apenas se compõe de azulejos simples de cor lisa de 14 cm que somente nalgumas sequências ostentam a “complexidade” de duas cores, por serem os que definem as linhas diagonais ascendentes ou descendentes.
Interessante será a observação do painel para quem suba ou desça a escada entre a cave e o rés do chão dada a confrontação prependicular entre a estrutura da mesma e a dessas barras diagonais.
Se o leitor se afirma incondicional apreciador de painéis de azulejos não deixe pois de refrescar o seu elenco de fruições estéticas com mais este produto genuíno da obra de Eduardo Nery adquirido, em tão boa hora, pelo Montepio Geral.