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publicado no Diário de Coimbra de 31 Outubro 2005
A Cooperativa Bonifrates celebra 25 anos. Um quarto de século de valiosas actuações, um itinerário recheado de momentos fortes.
Levou à cena mais uma vez, agora no TAGV, uma peça “de cuyo nombre no quiero acordarme”, com o seu cortejo de palavras pesadas que nos recorda, com particular sentido de exaltação humanizada e elegância estética, que o mundo é mundo, campo de batalhas perdidas e sonhos pueris, de desejos desmedidos e, tantas vezes, de uma dura e intolerável desesperança.
A. Kowalsky e João Maria André constroem esta peça sobre o tema da mais velha profissão do mundo, libertando-o do oportunismo “voyeurista” com que tantas vezes é tratado, construindo uma obra de conteúdo universal e sensível, liberta de moralismos hipócritas, plena de todas as contradições e potencialidades da vida, desde as mais vulgares às mais absorventes. O texto, apoiado muito embora num honesto estudo da matéria de que trata a peça, parece-me ultrapassar em muito os referenciais sociológicos de que é oriundo, mergulhando progressivamente numa esfera de apreciação da fenomenologia dos afectos, da desmontagem da violência nas suas motivações mais primárias, da injustiça e do precário destino dos homens. Amplamente documentado a respeito do submundo transtornado das “mulheres da vida”, demonstra a secreta vulnerabilidade dessas criaturas singelas e vulgares, cativas e exploradas pela via do seu mais delicado préstimo natural, para efeito de sobrevivência própria e amparo familiar.
Depois de um prólogo ou “divertissement” inicial que a peça, desde o seu mais breve começo, fez recuar para o nosso completo esquecimento é, entre realismo sem complexos e expressionismo de invulgar efeito que se desata a construção dramatúrgica; à qual, apenas a caminho do seu desenlace, se vem juntar algo como um bosquejo de enredo personalizado. O expediente é utilizado de forma sagaz para introduzir o sentido de tragédia e defrontar o espectador com a imensa sombra da morte.
O corpo franzino da pequena prostituta drogada é então recoberto por uma das suas colegas de destino e profissão com um mágico “velo de oiro”, luz purificadora ou porta derradeira aberta para a libertação.
Eurídice Rocha, com um perfil que sai directamente dos cadernos de desenhos e das pinturas de Otto Dix, oferece-nos uma actuação inesquecível traçada nos limites do corpo, como tão frequentemente acontece nos palcos alemães, assumindo frontalmente esse risco, não ignorando certamente que um milímetro a mais ou um milímetro a menos poderiam colocar em risco toda a sua intensa atitude de verdade teatral.
Sozinha em palco executa dilaceradamente a “dança ritual do trabalho”, metáfora engenhosa do mais subtil efeito cénico já antes praticada noutro registo pelo colectivo das raparigas, que vai conduzindo ao desfecho do espectáculo que os seus construtores transpõem com invulgar talento para um outro espaço da mente, outros continentes e outras culturas, saída sem portas para o único horizonte possível da alma ou seja, a sua inalcançável transcendência.
A minha crónica termina aqui, lamento não poder alongar-me mais, mas não termina felizmente com esta peça o percurso riquíssimo dos Bonifrates, ou “bons irmãos” do Teatro.
Parabéns e louvor a todos os seus colaboradores e, para já, votos de outros 25 anos de profícuo labor artístico em benefício de toda a comunidade cultural!…
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