Alcina Marques de Almeida expõe na Casa Municipal da Cultura

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publicado no Diário de Coimbra no dia 2 de Dezembro de 2005

É muito belo que a raridade das excepções possa apanhar-nos desprevenidos de quando em vez, demonstrando que o imprevisto, aquilo que a sociedade já dera como improvável ou sem nexo, possa acontecer, com toda a naturalidade das coisas sublimes.
É inspirador visitar um artista genuíno, divagar com um poeta inspirado, tomar nota das palavras ditas e dos horizontes revelados, abrindo à luz a flor do pensamento.
Mas verdadeiramente invulgar é que isso possa acontecer sem ter de usar artifícios de linguagens, complexidades ou convencionalismos duvidosos.
É excepcional por exemplo visitar uma pintora de talento raro e verificar, com quanta candura despretenciosa, continua a mostrar na sala quadros de pintores certificadamente valiosos pelo conceito social, guardando num quartinho pequeno de arrumações outras obras suas, de muito mais mérito e originalidade, de muito mais intensa frescura criativa.

“Primum vivere, deinde filosofare”

Não é meu intuito ocupar-vos com frases providenciais de Aristóteles, apenas quero lembrar o privilégio que é poder abrir asas e voar, depois de se terem transposto com elegância e poder, todos os desafios fundamentais da vida.
Alcina Marques de Almeida é profundamente pessoa ao mesmo tempo que se descobre a si mesma como talentosa artista, cujo pensamento flui em cada gesto, exprimindo-se com elegância e gosto em praticamente tudo o que faz.
Uma artista que expõe quadros que são para mim como percepções poético-filosóficas ou sínteses minimalistas do mais evoluído esteticismo, prontifica-se a revelar sem temor todos os segredos cruciais da sua destreza oficinal, o local onde pinta, as técnicas e as tecnologias utilizadas.
E dá-nos a ver uma exposição inteira, tendo deixado em casa uma rectaguarda de experiências cheias de novidade genuína, passando com naturalidade por cima de todas as preocupações de caracterização estilística, indexação de influências, fixação de padrões de referenciação teórica ou qualquer outra necessidade de tornar complexo o que é intuitivo, intrincado o que é cristalino.
É isso que a torna diferente e é esse facto que me restitui toda a esperança no conceito por vezes excessivo e artificial da arte como situação organizada, do meio cultural como intrincado de relações, e da inteligência sensível como refém de categorizações excessivas.

Poética e transcendência do que é simples, mas não é “fácil”

A exposição que nos apresenta na Casa Municipal da Cultura é constituída por um número assinalável de telas, organizáveis por grupos bem caracterizados de exploração plástica, coerentes na economia de processos, no pluralismo de abordagens e na escolha criteriosa das melhores soluções.
Na galeria do jardim podemos ver um conjunto de experiências dispersas, indicativas duma liberdade desejável para todo o artista ou registo de etapas vencidas, no desejo incontido de descoberta que o olhar atento vai colocando em reserva de contemplação activa.
Na sala principal foi eleito o conjunto mais forte, porventura aquele que agrupa os trabalhos mais recentes e com maior coesão estética.
A sua execução é marcada pela intuição liberta de preconceitos, sendo evidente uma extrema simplicidade de processos que conta com a energia estático-dinâmica da matéria da pintura e a sua confluência em zonas de diluição expressiva, escorrências, drippings e outros processos de execução automática que possuem toda a legitimidade. O aproveitamento de vestígios do suporte ou de “perfurações” do tecido cromático produzem o mais surpreendente efeito de afundamento das manchas de cor numa complexidade de planos remotos, nos quais o recortado daqueles vestígios chega a sugerir o que quisermos numa visão de mistérios insondáveis.
Os trabalhos de mais acentuada economia de sinais atingem um notável sentido de sublimação da pintura, o que não significa de modo algum – tal como a referida simplicidade de processos – o empobrecimento ou despojamento dos conteúdos estéticos, antes contribuem para a sua excelência.
Valerá de muito pouco apontar paralelos de afinidade estilística, embora isso seja um exercício de requinte intelectual. A pintora, cuja fluência produtiva é duma surpreendente abundância, desmentirá que tenha agido em obediência a influências tutelares, concorrendo o próprio despojamento de apresentação das telas, que nada mostram para além da superfície pintada, para reforçar o sentido da essencialidade defendido pela artista.
Essa circunstância é tão profunda em Alcina Marques de Almeida que começo por conversar com ela em áreas de razão cultural e acabo falando a respeito dos netos, ou seja, começamos por elaborar sobre conceitos abstractos e distantes e acabamos por nos fixar no essencial da vida, naquilo que tem de mais consanguineamente encadeado aos enlevos do presente e aos magníficos e imponderáveis sonhos do futuro.
O desdobrável que apoia a mostra é duma precária modéstia, o que demonstra que os caminhos trilhados pela cultura institucional conduzem a uma progressiva descaracterização dos seus actos.
Poupar na cultura, na arte e nos artistas, será essa realmente a solução para debelar os deficites catastróficos?

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