.Publicado no Diário de Coimbra de 19 de Dezembro de 2005
A acção da peça de José Ignacio Cabrujas que nos traz mais esta realização d’A Escola da Noite tem enquadramentos histórico-culturais próprios da sociedade em que ocorre, a venezuelana, num período temporal específico, habitado por mitos bem elucidados na documentação com que a companhia continua – felizmente – a enriquecer adequadamente os seus espectáculos.
A família descrita, inserida em meio suburbano duma sociedade em transformação, reage de forma expressivamente coesa, facto revelador dum comunitarismo próprio das suas raízes rurais, marcadas pela vocação da festa ritual, pelos velhos mitos indígenas e pela colectividade dos espiritismos coloridos de componente afro-americana. Se digo isto não é para ajudar o espectador (que disso não precisa) a destrinçar os itinerários ou contrastes da “cultura do milagre”, as vicissitudes do pecado judaico-cristão ou a frustração e desmembramento de certo quotidiano bem próximo da nossa realidade.
Os actores deste “Profundo”, cujo talento e dedicação não passam despercebidos a ninguém, mergulham frequentemente as mãos no chão térreo daquele palco, o que estabelece com esse plano simbólico uma relação de proximidade que vai do gesto de escutar a “voz” dos mortos sepultados à atitude de semear, palpar, cheirar e revolver. Decididamente, os subúrbios de Caracas estão muito mais perto da floresta mágico-ancestral que os arrabaldes branco e negro da cidade eterna (lembrar Pier Paolo Pasolini…) e o sentido de humor insinua-se a cada instante nesta desmontagem da ingenuidade patética ou necessária da carnal família Álamo. Quanto a esta, é surpreendida na cruzada de desenterrar a chave decisiva das suas “incumbências”: tesouro, relíquia ou sonho providencial que tantíssimos portugueses “escavam” nos totolotos da esperança fugaz, ou nas exaustivas peregrinações em busca de figuras tão místicas e propiciatórias como as do virtuoso padre Olegário.
As personagens desta peça de Cabrujas, aliás, não são tão “feios, porcos e maus” como seria possível numa observação contundente à maneira de Ettore Scola da suburbanidade carente e problemática, embora “o Boi”, nalguns acessos de moderada truculência, faça pensar nesse outro pai zarolho do realizador italiano. O tesouro não é descoberto, mas tanto faz.
O talante místico-imaginário tem o dom de transfigurar tudo na matéria inabalável da própria crença de que é feito, processo de assimilação ao qual nem escapa o cheiro nauseabundo da fossa encontrada no sítio onde devia estar aquele. Inteligentemente tratado pelo óptimo trabalho de toda a companhia, o espectáculo tem muita coisa a observar, em registo próprio de costumada sobriedade.
O “drama erótico” de Manganão, por exemplo (dado com subtileza tal que toda a gente percebe…) e a cena final, repassada dum simbolismo atroz, mediante a qual a pá das “escavações místicas” é elevada à condição de símbolo processional, transposição paródico-transcendental eivada de “profundidade” que aquele mesmo personagem entende inspiradamente conferir-lhe. Nada que não faça pensar maduramente uns quantos autores de frases definidoras do conceito de “profundo”, em repto participativo que A Escola da Noite lançou em gesto inovador, e que foram elevadas à dignidade do texto do catálogo com todos os riscos inerentes dos seus “desvios de subjectividade”…