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A peça comentada, que não tinha um folheto de luxo com ilustração própria, permite-me mostrar em sua substituição esta belíssima obra de Almada Negreiros, que vi exposta na Fundação Calouste Gulbenkian em 1984. É um óleo s/ tela (80 x 65) “Retrato Clássico de Arlequim” de 1941.
Publicado no Diário de Coimbra de 3 de Março de 2006
Largas dezenas de actuações e quase três mil espectadores depois, inicia agora um périplo diversificado a peça “Eureka, uma viagem ao mundo da Física” da Associação Cultural “Encerrado para Obras”.
Esteve no Museu da Física, fez parte das comemorações do Ano Internacional daquele ramo da Ciência e teve consultores universitários que para a mesma forneceram sugestões e deram pareceres válidos.
Por ter um enredo tecido sem palavras e por conseguir manter atenta a sua assistência, geralmente infantil, durante praticamente uma hora, o comentário a seu respeito – que não é fácil – terá que ser, pelo menos, diferente.
Se a dificuldade do trabalho é óbvia pela eternidade que quase sessenta minutos representam para a solidão do único artista em palco, imagine o leitor a dedicação, o generoso interesse e a variedade de recursos expressivos que foi preciso pôr em marcha para fazer surgir do nada uma tal peça, ainda por cima sujeita a um tema tão difícil como o de revelar e tornar atraentes leis e fenómenos do mundo da Física.
David Cruz e Estela Lopes, com apoio de larga equipa de outros sonhadores, lançaram mãos à obra de investigar os mil e um processos simples e sugestivos que poderiam desaguar nesse mar de fronteiras desconhecidas que é o da imaginação liberta e palpitante de uma criança, tão aberto e, contudo, tão vário e tão difícil de navegar com rumo certo.
Contrariamente à generalidade das peças de teatro que têm um texto, uma história e respectivas personagens como esqueleto do que vai ser vivido pelo espectador, neste caso foi preciso descobrir tudo. Esse tudo não foi apenas conceber e construir todos os apetrechos, mecanismos e engenhocas que, meio utensílios de saltimbanco, meio engenharia de efeitos especiais, foram dando corpo ao universo de artifícios que preenchem o espectáculo.
O recinto onde decorre o mesmo é tornado arena de circo, terreiro de acrobacias, plataforma de ilusionista, rampa de lançamento de luzes e objectos voadores, palco musical ou várias outras coisas de que me não lembro já!…
David faz isso com vocação de artista criador, com veia musical e com leveza de acrobata (que chega a correr alguns perigos…) mas, sobretudo, com o sentido de invenção que só uma enorme ternura e uma larga memória do universo dos espectáculos singelos podem justificar.
Uma passagem breve para o paraíso da infância
Há outra coisa muito importante na delicada atitude romântica que anima toda a sua actuação: numa época saturada de espectacularidades vividas em recintos enormes e recheados de artifício, David viaja para o mundo misterioso da Física levando os seus espectadores, por assim dizer, pela mão, tratando com eles à distância de um gesto, de um passe de bola ou de uma carícia.
Os adolescentes resistem mais ao convite que uma tal mensagem comporta. A sua mente começa a estar na dependência do choque de sofisticações que só a “high-tech” prodigaliza na esquizofrénica abundância dos “megabytes” ou no ribombar ensurdecedor dos “megawatts”.
É por isso que é importante que este espectáculo seja visto por muitas crianças, aquelas cuja mente está ainda a tempo de poder assimilar esse gesto simples e ingénuo que pode ter estado ao longo de séculos ao serviço da curiosa surpresa que anima a alma ao mesmo tempo que a comove.
Um sorriso simples e franco que não necessita para se enternecer que o sangue corra, ou um olhar de inusitado espanto que se desata sem ter de ouvir com medo, ao longe, o ribombar dos canhões.
Aos adultos que tenham a oportunidade feliz de assistir à peça, sugiro por todas as razões que o façam, não só pelas qualidades acima enunciadas, mas também por ser um reencontro, uma viagem no tempo, uma passagem breve para o paraíso da infância.