O “medo” da tela vazia e a regra fundamental de todas as brincadeiras

Postos perante o grande momento inicial da criação, ao qual muitos artistas se têm referido com um sentimento notável de angústia (o “vazio da tela branca”, o medo indescritível “de não saber fazer”)
concluimos rapidamente que é precioso o convívio com as crianças porque se desfazem instantaneamente fantasmas desse género.
Uma criança risca, mancha, constrói e desfaz com uma naturalidade tão imediata que faz bem ao espírito, porque nos limpa de preconceitos sem sentido.
O suporte não deixa de ser suporte, as tintas não deixam de ser tintas, mas cada vestígio do acto de brincar pode trazer-nos também a felicidade de nos dar a ver coisas novas, emocionantes e livres de toda a “impureza”.
Há na criança, evidentemente, aquela inevitável “procura do interdito”, o desejo de pintar “fora do papel”, entornar tinta num sítio “imprevisto”. Mas tudo isso faz parte de um jogo a que o camarada mais velho não deve furtar-se, o que me ajuda a configurar outro princípio básico, neste caso importantíssimo, da atitude sem a qual brincadeiras seriíssimas como estas são, jamais terão lugar:

No envolvimento entre uma criança e um adulto, terá este último de se deixar levar pelo essencial do espírito da criança, sem se esquecer que é um seu igual na participação, na alegria, no desejo e na disposição.
Pode (e deve) disputar com a criança no espaço respectivo de cada episódio lúdico, como se outra criança fosse, afirmando cada preferência como um direito ao “prazer do jogo”, ao “direito de brincar” e ao privilégio de “mandar”. Entre crianças está sempre pressuposta uma certa hierarquia, não isenta muitas vezes do fermento ingrato da prepotência intolerante. Aqui a atitude do camarada mais velho deve temperar a fatalidade de tais comportamentos com a maleabilidade forte que permite sublimá-los sem distanciar a criança da realidade, sem educar para a prepotência, a cobardia, a irresponsabilidade ou a anarquia.

Não há criança nenhuma que não reconheça instantaneamente no adulto a diferença essencial do que é uma participação envolvida e interessada numa brincadeira, por oposição àquela outra coisa indesejável que é a presença desajeitada, “tolerante”, meio impaciente meio autoritária, tantas vezes vencida pelo cansaço ou pelo aborrecimento!…

Para brincar com uma criança é preciso dispor duma frescura igual, ou tão semelhante na sua natureza, que a criança possa aceitar como genuína.

A generalidade das crianças é, a esse propósito, muito mais “tolerante” com as “insuficiências” dos adultos do que estes em relação àquelas.
É uma questão de necessidade: a criança brinca com quem pode, não brinca com quem quer!…
O mais dramático é que tenha, muitas vezes, que estar a brincar sozinha fazendo de conta que não o está.
Muitas e muitas vezes é esse o cenário que se repete. Todas as crianças passaram por isso muitas vezes, sem que isso as tenha prejudicado, felizmente, de forma definitiva.
Mas esse prodígio deve-se mais à frescura das crianças que ao talento dos adultos e o melhor seria que tudo fosse condizente com a alegria que premeia ambas as partes, representando cada uma o papel que lhe cabe, com satisfação genuína.


003 p

Seria injusto não dizer algo a respeito desta obra, dado que ela atinge um nível muito complexo de composição cromática, cuja autoria – para quem tenha olhos para ver – jamais poderia ser minha, dada a “autoridade” na demarcação e na articulação das zonas componentes. É necessário acentuar neste caso que o nosso “grupo de trabalho” já evidencia o domínio de certas rotinas que foram sendo apropriadas e que harmoniosamente se impõem sem enfado, com a lógica conveniente que cada tarefa envolve. Sem o fenómeno das sucessivas intervenções do “secador”, esta coexistência de “cores limpas” não teria sido possível.

018 p

O que venho dizendo a respeito da espontânea criatividade do Flávio não se aplica a este trabalho. O que aqui vemos denota claramente a intrusão excessiva no trabalho compositivo feito pelo artista menos jovem. Esta imagem, aliás, foi introduzida nestes textos apenas muito depois da sua versão original, como exemplo ou excepção à regra. A ordenação é excessiva e fica aqui apenas para demonstrar o seguinte: a lógica dos elementos em presença – obviamente resultantes de colagem (essa grande auxiliar de muitas destas façanhas de aprendizagem pelo prazer puro) – apenas é tolerável mediante a fortíssima personalidade das manchas verdes sobre branco inventadas pelo Flávio, a que o rasgão mais irregular do papel branco que está em cima confere uma indispensável nota de liberdade.

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