Vamos então ao que interessa

Descobri, sem ter tido grande necessidade de me esforçar, que havia um grande número de actividade que me eram habituais e que interessavam imenso ao Flávio, teria ele dois anos.
Para começar, não tive receio nenhum de o ver entrar no meu atelier, cheio da energia que a curiosidade faz nascer num menino daquela idade, que vacilantemente caminha em direcção a tudo que dá asas a uma curiosidade sem limites.
O privilégio foi meu de o deixar entrar naquele espaço tornado exclusivo por efeito de uma certa “liturgia do imaginário”, sem me deixar abater pelo receio de que algo terrível iria acontecer aos mil e um artefactos que por ali se distribuiam numa ordem predisposta, contrafeita, “organizada”.
Esse foi portanto o instante inicial duma frutuosa convivência que não hesito classificar de criativa, o que está demonstrado ao longo dos últimos três anos, mas que é muito mais do que isso: o encontro de duas pessoas que começam apenas a conhecer-se e que desejariam continuar assim, livres e apaixonadas por coisas simples como abrir uma lata de tinta vermelha e despejá-la em diversos frascos, enxaguando muito bem a lata depois, guardando-a para o que for preciso!…

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A água, mãe de todas as brincadeiras

Usando tintas de água na minha labuta de pintor, tenho já ao meu alcance o primeiro elemento vivo que se presta a incontáveis manipulações divertidas:

– encher o balde onde se vão depois lançando os pincéis já sujos;
– trazer o balde para junto da mesa e encher depois dois ou três frascos de vidro com água do balde, etc.
(esta última operação ganha imenso em ser levada a cabo através de uma borracha daquelas de lavar ouvidos que também uso muito, dado que especializa e amplifica o prazer de mexer na água!).
– as tintas das diversas cores que usamos não são apenas aquelas que estão em tubos, ou latas, ou frascos. Às vezes também é preciso produzir um determinado tom, a partir de um pigmento em pó, o que fornece uma variedade de manipulações arriscadas, mas deleitosas.
– no caso das cores que repousam há semanas ou meses em certos frascos parados, o ritual de cheirar a cor provoca sempre uma percepção específica da natureza do material, e um arrepio de prazer ou de repulsa (a que uma careta expressiva vem conferir o toque teatral a que se segue a gargalhada espontânea!…)
Rituais do género são sempre seguidos duma cuidadosa acção de remeximento, para que a emulsão ganhe qualidades úteis e expressivas.
No caso de artistas como eu e o Flávio tais delongas não são tempo perdido, muita atenção!…
É necessário, de acordo com o que é dito antes e com o espírito geral da nossa tarefa, deixar aqui uma ideia muito importante: o que nos anima e entusiasma em todo este trabalho não são os produtos finais, mas sim o longo itinerário percorrido e todos os seus acidentes.
Tanto valor tem entornar cuidadosa ou precipitadamente um frasco dentro dum balde, acrescentar duas ou três gotas de água dentro dum godé para aligeirar uma mistura, esvaziar uma lata de tinta dentro duns frascos ou remexer com gosto um pincel dentro dum frasco bem cheio de amarelo!…
Todas estas coisas cheiram, todas convidam à manipulação saborosa, todas envolvem riscos (uma ou outra camisola manchada previne-se vestindo os dois artistas um longo bibe branco, onde as nódoas coloridas vêm habitar como testemunhas duma alegria simples, mas conseguida).
Preparar o material, escolher as cores, cortar o papel, e nos intervalos cuidar sempre da limpeza e das arrumações.

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Este trabalho, como outro que se segue, resulta de um “traço espontâneo”, a azul forte, de autoria do Flávio, em que a escolha do suporte e respectiva cor proporcionam uma grande intensidade expressiva. Ao camarada mais velho tocou um aspecto muito lúdico e muito produtivo que dá prazer a ambos: a junção do elemento água!… Actuando de forma inteiramente automática ou muito reduzida oferece ao “operador principal” uma grande quantidade de acidentes que ora suscitam sorrisos e aplausos, ou as mais iradas reclamações!…
É de salientar que nos traçados destes trabalhos, o gesto criativo inaugural, são exclusivamente do meu amigo artista. Eu actuo perante ele como o “peão de brega” das lides taurinas ou como a “enfermeira instrumentista” das operações cirúrgicas. Faço um trabalho importante mas o génio, o saber sabido, é todo dele.
O tumulto dramático destes vultos é um testemunho eloquente desse facto.

Uma das regras fundamentais dentro do tal espaço “adulto” do atelier recheado de materiais secretos e “proibidos”, é pôr de lado todos os preconceitos e evitar a todo o custo as regras excessivas.
Os Flávios devem ter o direito de mexer em tudo, abrir todas as caixas, explorar todos os conteúdos!…
Mas essa liberdade não é um privilégio gratuito a que o camarada mais antigo possa assistir com preguiça, negligência ou desatenção.
A minha ideia é que esse processo de liberalização de atitudes tem de ser participada, enriquecida com a noção de respeito pelas coisas, para que elas sobrevivam ao prazer de serem usadas não uma só vez, mas muitas vezes!…
Deixar que uma criança se deleite com a destruição gratuita de objectos, sejam eles os mais humildes, abandonando-a ao sentimento permissivo duma certa excitação dispersiva, é um exercício mais que inútil: é muito grave.
O perigo duma tal situação representa associação de vários inconvenientes muito sérios, radica no espírito de quem a pratica uma perigosa insatisfação, tende a repetir-se noutros contextos e pode ajudar-me a referir uma das principais ideias que norteia o sentido das minhas experiências com o Flávio:
– No que toca à criança: é a brincar que se aprende a viver; é a brincar que se aprende a realizar trabalho sério; é a brincar que se aprende a valorizar o prazer naquilo que ele possui de energia vital organizada e inteligente!…
– No que toca ao adulto, camarada mais velho: é a brincar que se adquire o sentido mágico do renascimento de todas as coisas; é a brincar que a autoridade se habitua a prescindir da imposição forçada; é a brincar que a criança que habita em nós se apercebe de que o futuro passa pela disponibilidade sensível, cuidadosa e atenta, e que é esse o único esforço que podemos fazer para que o nosso conhecimento se transforme em inteligência futura!…

– Brincar com uma criança não é um exercício precipitado, episódico, casual. Brincar é estar atento, é acompanhar com amor cuidadoso e inteligência produtiva!…

3 thoughts on “Vamos então ao que interessa

  1. Isabel Magalhães

    ” – Brincar com uma criança não é um exercício precipitado, episódico, casual. Brincar é estar atento, é acompanhar com amor cuidadoso e inteligência produtiva!… “Que GRANDES verdades! :))))Abraço. Sempre a dividir.I.

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    1. CB Post author

      Obrigado Raquel, é bom saber que esteve de visita. Quanto à distância no tempo, amadurece todas as coisas, dá-lhes altitude. A prova do que digo, pode encontrá-la nas minhas memórias de “O Meu Avô na América” e em tantas outras coisas que mostro por aqui…

      Responder

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