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Aos lugares pertence a paisagem como pertencem a cada pessoa o rosto, a figura, o carácter. É por me olhar ao espelho todos os dias que posso dizer aquela frase simples, de auto reconhecimento fundamental:
– Olha, aquele sou eu!
Rosto, imagem, palco do teatro ambulatório que mostra ao mundo o espectáculo do que nos vai cá dentro. Os grandes acidentes e fenómenos da paisagem, tal como qualquer pequeno recanto habitado, têm na sua imagem algo que lhes confere personalidade, consoante a capacidade do nosso sentimento em reconhecê-los e valorizá-los.
O caso das serras é, dentre todos, de uma natureza muito distinta. Aquela formidável concentração de massa e energia vital dá às serras o carácter de coisas transcendentes, com identidade e potencial simbólico.
A nossa Serra, continente indizível de episódios vividos ou sonhados, é aquele vulto familiar que avistamos de longe ao chegar, com emoção; é sustentáculo de uma confiança ignota que fica ali de reserva para todo o sempre, se partimos.
Uma fileira de pilares, bandarilhas de vulgaridade no dorso dum mito…
Foi com desgosto consternado que notei, há tempos, que a Serra estava a ser sacrificada
por uma enfiada desses novos, pragmáticos e nada quixotescos moinhos de fazer electricidade. À banda, rompe-se a cicatriz de uma imperiosa “linha de transporte de energia”. Não vou contestar a medida, nem discuti-la, nem perder tempo entristecendo-me com mais este abanão no património paisagístico. Estamos mentalizados por forças esmagadoras e infatigáveis a prescindir de tudo − do mais sagrado ao mais singelo − em nome de razões materialistas que uma atroz ideia de “economia” torna inevitáveis.
Uma Serra com seu imenso vulto sagrado transformado em dragão de carrossel de feira, com as escamas do dorso feitas candeeiros de loja de bric-à-brac; já não posso embrenhar-me por ela em sonhos, com medo de tropeçar num molho de kilovátios.
E o mesmo sucederá às bruxas, aos lobisomens, às aves do paraíso, às fadas madrinhas e aos duendes!…
É mais uma razão pragmática, económico-financeira, a ganhar espaço ao sonho, aos valores imaginários, à alma das coisas. Por toda a Europa se instalam centrais eólicas como esta. Como são escolhidos os sítios, não sei. Do que leio e vejo nas notícias uma coisa é frequente: nos locais onde a paisagem é considerada um património significativo para as populações, são muito activos os movimentos cívicos que clamam em sua defesa. São formados para aquelas pessoas que têm respeito pela imagem do seu rosto, e que se reconhecem nas paisagens da sua terra como se se olhassem ao espelho!…
Este texto foi publicado no “Trevim”, na sua edição de 19 de Abril de 2007, e as fotos aqui publicadas foram tiradas antes do mau passo…