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publicado no Diário de Coimbra de 03 de Abril de 2008
Num país cujos nativos se matam impulsivamente pelas estradas na mais irracional indisciplina rodoviária e em que o prato do dia é o de uma desconjuntada professora medindo-se às bulhas com uma raparigota em ambiente vagamente idêntico a um combate de box, tenho uma imensa vergonha de vir falar aqui na falta de respeito pelo silêncio que se observa em certas salas de cinema.
Pequenas coisas assim solicitam o desconforto da intervenção cívica de qualquer de nós porque a construção da disciplina não dispensa a atitude responsável dos cidadãos nem pode simplesmente instaurar-se por decreto.
Peço desculpa por ter roubado este espaço ao comentário deste filme de Mike Newell em que é tratado um dos sempre magníficos livros de Gabriel García Márquez, que não fica prejudicado na sua merecida notoriedade de escritor e nas virtudes que tem de bravíssimo cidadão do mundo.
Uma releitura rápida do livro destinada à elucidação deste comentário esclareceu um facto que não é frequente: a realização do filme segue à risca uma enorme quantidade de dados concretos que o livro nos apresenta.
Podemos não gostar daquele Florentino, podemos ficar desiludidos com aquela Fermina, cujo pai afinal não é gordo como no livro e algumas das inúmeras conquistas do protagonista têm mais do gélido perfil de modelos de passerelle do que da espessura confortante e realista de verdadeiras mulheres do caribe. Não chegando este filme ao nível de excelência das melhores adaptações de obras literárias para o cinema, longe de Franco Zefirelli e longíssimo de Visconti ou Pasolini, oferece não obstante na sua opulência cenográfica e na sensualidade pretensamente equatorial, magníficos pretextos quer para a leitura do livro quer para a visitação do filme, ao qual não faltam recursos afins da literatura tais como o amparo expressivo do narrador.
Excepção feita a algumas perspectivas paisagísticas de grande angular, é todo feito em cenários especialmente fabricados para o efeito, atingindo com isso uma opulência quase barroca, cuja autenticidade relativa ao tempo e aos lugares não é possível certificar de modo algum.
Muitos dos que já leram a obra acusarão fatalmente o afastamento que não está entre livro e filme, mas entre linguagens com vocabulários e virtudes de natureza diferente, motivo que não deve perturbar o nosso amor pelas coisas, mas complementá-lo da forma mais adequada.
Ler um livro de Gabo é uma experiência insubstituível e o tempo da leitura é muito mais antigo que o tempo do cinema, tecnologia ficcional que constitui um diferentíssimo processo de construção de imaginários. Além disso o cinema que nos chega de Hollywood evoluiu para ritmos narrativos forçadamente impressionantes e é apoiado por bandas sonoras duma violência desconfortável que chegam a reduzir a percepção consciente das ideias.
A edição portuguesa que possuo de “O Amor nos Tempos de Cólera”, além duma escusada quantidade de gralhas está, porém, enriquecida com um belíssimo comentário crítico de João de Melo, a não perder.
Já agora, um pequeno desafio: acompanhar a leitura da obra pela compaginação com o seu original em castelhano, deliciosa experiência que incondicionalmente se recomenda.
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