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Esta notícia foi publicada no Diário de Coimbra de 2 de Dezembro de 2008
Se o leitor se interessa por motivos de natureza cultural e não está a pensar deslocar-se em breve a Anadia, acho melhor que mude imediatamente de ideias. O tão conhecido consumismo faz as pessoas viajar muitos quilómetros (se preciso for, de avião) não levando em conta coisas aqui tão perto e de tão grande valor. O Museu do Vinho da Bairrada é um centro cultural de elevado nível, dotado de arquitectura notável, espaços e infra-estruturas muitíssimo respeitáveis alojando, para além das visitas temáticas permanentes que propõe em conceito de modernidade e avanço tecnológico, um programa sustentado de valiosos acontecimentos temporários, três dos quais tenho o prazer de comentar hoje, muito resumidamente. De autoria de artistas originários da região da Bairrada, criativos que a si mesmo se intitulam “os Eugénios” (Fernando Jorge, Luís Gamelas, Luís Santiago, Augusto Formigo e Eugénio Moura Inês) temos as “Eugeniaturas”, 70 caricaturas de individualidades diversas, oriundas quase todas do âmbito nacional lisboeta, onde vivem e prosperam os raros portugueses que fazem e dizem coisas, que “aparecem” na televisão e que são, enfim, mediáticos. O modo como esta exposição está montada constitui uma obra por si só, pela originalidade de contextualização dos diversos grupos de trabalhos, à qual não falta a particularidade de duas caricaturas (oh, céus!…) penduradas num edifício lá fora, longe, as quais têm de ser vistas… de binóculo!… Tal excentricidade não peca por excesso, antes condiz com a inteligência criativa e sentido de humor em evidência, que é o que se procura transmitir.
Passemos em seguida à exposição de pintura e fotografia que assinala os 25 anos de carreira de Gustavo Fernandes. O conjunto de obras expostas é de uma intensa maturidade técnica, afirmando uma filosofia muito particular do objectivo e do subjectivo. O primor das execuções e o seu encadeamento simbólico configuram uma visão mais que do tecnicista, psicanalítica. A terminologia vulgar ou as categorizações de escola ficam aquém do que é dado a ver. Nem o surrealismo, nem o hiper-realismo, nem a matriz fotográfica resolvem só por si esta problematização do sonho, ou do pesadelo, que nos deixa sós de olhos abertos sobre uma realidade interior, sem tempo. Há silêncios feitos de ausência, horizontes de infinitude, materiais sem alma aparente vistos à lupa, rostos que se nos escapam, o senhor do boné que procura algo que está fora do quadro e a criança que esconde o seu olhar do animal imenso que (não) está lá. Na série dedicada ao vinho, espécie de uma vitalidade mitologicamente meridional ou de velhas ritualidades do sagrado, os símbolos imediatos da sua presença aparecem cruzados com um corpo fraccionado de mulher equivocamente despida/vestida e sem rosto. O pintor sujeita-se ao tema mas não consegue alhear-se da sua visão própria, intensa, violenta (a palavra sai-me, não posso evitá-la).
Rogério Timóteo é o artista que protagoniza a terceira das exposições temporárias, constituída por um conjunto de esculturas e desenhos. Nas primeiras apresenta o cruzamento de materiais fortemente contrastantes: o ferro e o mármore; o Norte e o Sul de uma geografia dos sentidos; a vulnerabilidade da carne frente a tudo aquilo que lhe é exterior; o sangue e a técnica; o grito humano de encontro à funcionalidade do mundo. A fragilidade e a audácia do corpo encontram-se metaforicamente em evidência como elos de uma cadeia de tensões, colocados no ponto crucial de expansões energéticas: o desejo do voo, a proa do navio, as soluções de continuidade entre colunas assimétricas, a dor e o sacrifício. Os desenhos distribuem-se por dois ciclos, um mais formalista outro mais tumultuoso, mas ambos bem articulados com as peças restantes. É especialmente bem escolhida a forma de acabamento e cobertura das obras com resina acrílica, o que confere uma vibração lumínica que complementa bem a sóbria austeridade da técnica de registo. Embora cada uma destas três exposições denote uma forte personalidade, é de acentuar que cada uma delas pode coexistir com as restantes, dadas as qualidades arquitectónicas dos espaços onde são inseridas e a forma como este foi administrado pela organização das mesmas.