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O “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago é uma portentosa alegoria da condição humana e do mundo tal e qual se encontram, entregues a uma cegueira muito mais que simplesmente metafórica, revelando os humanos uma incapacidade quase natural de encarar problemas colectivos com alguma generosidade, altruísmo ou até o mais elementar bom senso.
O filme “Blindness” do realizador brasileiro Fernando Meirelles é uma versão cinematográfica da obra do escritor português, motivo que tem imenso interesse para todos aqueles que têm seguido o auspicioso devir do seu notável trabalho literário.
O filme é de uma qualidade fora do comum, segue de muito perto o espírito e a letra da obra em que se baseia e enfrentou de forma criativa as não poucas dificuldades que um tal enredo certamente apresenta.
A notável co-produção do Brasil, Japão e Canadá permitiu ao realizador brasileiro a adopção de soluções cenográficas muito avançadas com níveis de extraordinário realismo, grande número de figurantes e contextualização visual impecável.
A história trata da eclosão de uma inexplicável “cegueira branca” que surge como disparador duma situação limite como aquelas que as artes narrativas frequentemente utilizam para desencadear o drama. Coloca em questão a dificuldade que os homens têm de se organizar de forma pacífica e benévola face às situações de crise, que tendem a ser constantes por essa mesma razão. Demonstra também a extrema vulnerabilidade da espécie humana face a catástrofes gerais, de que a cegueira aqui é um mero exemplo simbólico.
Ao que parece, não basta ao Homem estar por natureza condenado à morte, não bastam todas as suas limitações e relativismos: fora do seu núcleo pessoal mais estreito, e logo que tenha de repartir o seu destino, acorda em si o impulso egoísta e a lamentável incompreensão.
Na refrega de todas essas contradições surgem sempre os actos de heroísmo isolado, as demonstrações de corajosa lucidez e de comovente generosidade que tão importante lugar conquistam na literatura, no teatro e nos outros testemunhos que o homem está condenado a escrever com sangue e lágrimas. Pena é que nem todas essas histórias estejam destinadas a um fim feliz.
Uma grande virtude do filme de Meirelles é a de estimular a revisitação da notável obra que lhe dá origem, efectuando o espectador interessado a ponte entre ambas, no pleno usufruto do melhor de cada uma.
É com essa a coabitação de valores positivos que as artes presenteiam os homens, numa clara demonstração de que todos ganhariam se nos comportássemos como irmãos solidários. E para que não fosse tão frequente termos de repetir, com amargura atravessada na garganta que “estamos cegos porque estamos mortos” ou que “estamos mortos porque estamos cegos”, envolvidos pela teia de um dilema sem resolução por não passarmos, muitas vezes, de “cegos que vendo, não vêem”.
O bom hábito de ficar ao fim do filme lendo a lista de todos as pessoas e organizações que colaboraram na sua produção tem o mérito de revelar que o cinema, como muitas outras formas de intervenção artística, resulta da sobreposição de esforços inteligentes entre pessoas e organismos distintos.
O genérico de “Blindness”, dada a sua extensão, é um caso superlativo e exemplo positivo de colaborações que podem contrabalançar o cepticismo que a mensagem do livro e do filme podem semear no nosso espírito.
Nem tudo está perdido e a paz construtiva é possível sempre que os homens quiserem.
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