“O Leitor”, Eros e Thanatos, a celebração da palavra e o labirinto dos tribunais

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Públicado no Diário de Coimbra de 24 de Fevereiro de 2009

Na abnegada pesquisa que costumo fazer a respeito dos filmes que comento encontro sempre coisas fantásticas. Desta vez foi uma entrevista do próprio Stephen Daldry, realizador do filme, cruzada com um artigo do Los Angeles Times de Setembro de 2008 a respeito das lutas intestinas entre os principais investidores e mandantes da “indústria”, anteriores ao lançamento de “O Leitor” para a competição aos Óscares.
Digamos que essas histórias por detrás do cinema não são menos emocionantes que o próprio conteúdo das ficções, tendo o espectador que reunir coragem para entender a obra como algo derivado do talento criativo de certos artistas envolvidos e não apenas a resultante das catacumbas do negócio e dos seus avatares.
“O Leitor”, como tantos filmes, é baseado num livro, neste caso da autoria de Bernhard Schlink, escritor alemão que analisa factos ligados ao sentimento de culpa derivado das atrocidades cometidas no decurso da segunda guerra mundial. Investigações posteriores identificaram a figura feminina que teria dado lugar ao perfil de Anna Schmitz, protagonista do drama em causa e que seria nem mais nem menos que uma odiosa carcereira do campo de concentração de Buchenwald.
Quer o livro, quer o filme, oferecem-nos contudo uma personagem muito menos forte e determinada de que apenas ficamos a conhecer o lado da sensibilidade vulnerável e da precariedade de recursos de carácter.
Um julgamento casual muito depois do fim da guerra levam-na a depor perante um soleníssimo tribunal e é com aparente facilidade que um grupo de outras carcereiras muito mais astutas conseguem atirar com ela para uma terrível condenação de prisão perpétua.
É condenada por ter escrito de seu próprio punho uma elaborada nota de culpa, ela, que nem sabia ler nem escrever.

O filme é muito complexo, muito bem construído, foca diversos assuntos de mão cheia: o remorso por omissões, a questão do holocausto, a consciência colectiva da culpa, a tenacidade fria dos vencedores endinheirados, o ensino das leis, as trágicas contingências da Justiça e dos seus “funcionamentos”, etc.
É-me impossível por isso abordar aqui tudo o que poderia ser dito a respeito e irei ficar-me por um ponto que me pareceu magistralmente sugestivo.
Num contexto finamente erótico (qual é o filme de bilheteira mundial que poderá esquivar-se a esse primordial argumento de sucesso? …) uma mulher de rosto assustado e perdido encontra um rapaz na fina-flor da sua adolescência, o qual consegue conduzir aos encantos do leito sem nenhuma resistência. Prendado estudante de ensino médio (que na Alemanha não é campo de batalhas inglórias…) domina com finesse e voz bem timbrada textos clássicos, dramas consagrados e outras peças literárias de precioso encantamento.
O principal acessório desse convívio apaixonado organiza-se por conseguinte em torno da celebração da palavra sentimental e dramática, sentida, ouvida e sonhada.
Por razões que o enredo não clarifica totalmente a protagonista suicida-se ao fim da história. E é intelectualmente cruel e teatralmente alemão que tenha escolhido uma pilha desses livros clássicos como alçapão do seu cadafalso.

Num filme que não resolve nenhuma das suas contradições maiores mas é farto de sugestões problemáticas, este é mais um enigma com que Hollywood responsabiliza a consciência crítica do espectador. E não é pouca coisa nem elogio de somenos a cento e vinte e três minutos de cinema sem pacote de pipocas e com tampões bem postos nos ouvidos por causa do barulho infernal das projecções fílmicas dos dias de hoje.

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