palavras para Mariana
nome pelo qual meu avô tratava minha avó Maria
que calma tens tão segura
Mariana
que olhar tão transparente
há uma fonte que do alto da tua cabeça
derrama sobre a casa um perfume sereno
presença infindável e secreta do corajoso sangue materno
pouco importa
se das paredes se desprendem fios de neblina e esquecimento
transposto o limiar da porta
sento-me
e é como se estivesse já acesa a lareira que espero desde o Inverno
à saída inevitável de Agosto
as costas das tuas mãos revelam através da porcelana fina
o azulado ténue das veias
e não há forma mais imediata de tornar inúteis as palavras
que aprender nesse azul os gestos sossegados
o saber fazer o chá
o dobrar cuidadosamente os linhos
o vento atravessa todas as muralhas
eriça de espuma as águas
a tua voz
é de silêncio emoldurado pela esperança
que calma tens tão segura
Mariana
que olhar tão transparente
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A minha querida mãe Maria de Lourdes, ao lado de Maria da Silva Gomes (“Mariana”).
palavras para meu avô Sebastião
meu amigo e confidente
Sebastião
homem de baixa estatura e meu amigo
onde poderei procurar-te caso me encontre perdido lá longe
onde me desencaminhem a luz e a altura
irei procurar-te passeando sozinho nas margens dos rios
ao longo das compridas alamedas
e onde houver jardins onde crianças brinquem
ou grandes obras de engenharia com as quais possas recordar América
seu sonho seus altos céus que os formidáveis edifícios arranham cá de baixo
sem temor nem dúvidas metafísicas
Sebastião
ceifeiro de sonhos e viajante arrependido a quem devo meu nome
vou procurar levar-te uma bíblia e um cavalo
a bíblia para que tenhas um livro em que possas descobrir com fé
os mistérios que livro algum poderá explicar
e um cavalo para que possas recordar teus dias de garbo de esperança
e de maioridade conquistada a pulso
Sebastião
homem de baixa estatura e meu amigo
lembro-me bem do teu cheiro
da tua pequena tosse
e da forma nervosa como passavas o lenço pelo rosto
quando me contavas as histórias mais empolgantes
as tuas memórias mais vividas
decerto te lembrarás das manhãs de frio
em que te oferecia um pequeno cálice de porto
mas tenho que confessar-te que escolhia sempre o cálice mais pequeno
para poder ter a alegria de te obsequiar por mais do que uma vez
sem te causar transtorno
quanto à bíblia que é um livro complicado
e ao cavalo que não vai servir-me para chegar muito para além das nuvens
talvez seja melhor levar-te escondida na bagagem uma bela garrafa de porto
quando te encontre de novo vamos beber os dois pelo gargalo
e marcar enfim passagem num vapor
desses que vão para a América coração enérgico dos teus mais belos sonhos
Sebastião
homem de pouco mais de metro e meio
e muito meu amigo
se for muito difícil achar-te em largas avenidas irei procurar-te ao por do sol
onde de novo aprenderei contigo como é bonita a luz perdida do fim da tarde
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Meu avô tinha por hábito, na casa onde por último morámos em Coimbra, chamar-me para poder ver a larga paisagem que dali se via sobre o Poente, sempre que a luz lhe parecia bela, para partilhar comigo a emoção das cores do fim do dia.
Esta foto foi tirada alguns anos antes, nos começos de sessenta, na varanda da nossa casa de Leiria, com o castelo ali por cima.
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Meu Caro Amigo: Maravilhosa evocação!